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Desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do TJ-SP, rasga a multa por não usar máscara contra o coronavírus em espaço público.
Desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do TJ-SP, rasga a multa por não usar máscara contra o coronavírus em espaço público.| Foto: Reprodução/Youtube

O Brasil só será o país que queremos quando acabarmos com a cultura do "sabe com quem está falando" e começarmos a do "quem você pensa que é?". As medidas tomadas contra o desembargador da carteirada não prometem essa mudança. Parece que vai haver punição por humilhar o guarda civil que queria que cumprisse a lei e usasse máscara, mas isso não é suficiente para mudar o sistema.

Não há indicação de alteração na estrutura que nos levou a ter uma autoridade do Poder Judiciário que se considera acima da lei e mais igual que os outros. Se há punição neste caso, ela não se deve a avanços do sistema, mas da tecnologia. A única diferença é a existência de câmeras de vídeo e redes sociais. O sistema continua tolerando e produzindo outros doutores com os mesmos vícios.

Se a indignação das autoridades diante da conduta do desembargador fosse legítima, ela teria vindo quando do primeiro vídeo, em maio. A indignação não é pelo comportamento, é por se deixar filmar. Fosse diferente, haveria preocupação em procurar falhas no sistema, não somente em punir.

Se agora chamou o guarda civil metropolitano de analfabeto, há dois meses o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira disse algo que pode ser entendido como ameaça velada aos guardas que insistiam para que usasse uma máscara. "Olha, vocês, nessa organização de vocês, que não tem poder de polícia, eu não sei se vocês têm IPM. Tem Inquérito Policial Militar? O meu irmão, que chama-se Francisco, é o Procurador de Justiça que atua nos IPMs da Polícia Militar". O Guarda Civil pede para que ele entre em contato com o Secretário de Segurança de Santos, Sergio del Bel, que é o chefe deles. "Não, eu vou entrar em contato com o presidente do Tribunal Militar, que é o coronel Geraldi e vocês vão ter um problema, que eu não quero. Mas, se vocês insistem...", retruca o desembargador. (O coronel Orlando Eduardo Geraldi foi presidente do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo no Biênio 2012/2013. O presidente atual é o coronel Clovis Santinon.)

O assunto virou um hit das redes sociais, em parte porque toda autoridade quis dizer muito claramente que repudia com veemência este tipo de conduta. Foram emitidas notas contundentes por parte do Tribunal de Justiça de São Paulo e do prefeito de Santos. O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, não perdeu tempo e já abriu procedimento pedindo explicações ao desembargador.

Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira iniciou a carreira na magistratura em 1983 e tornou-se desembargador em 2008. Seria uma surpresa esse tipo de conduta? É possível que em 37 anos ninguém tenha percebido nada? Ou isso foi tolerado durante quase 40 anos porque não existia tanto celular que filma?

Que sejam instaurados os procedimentos e o desembargador responda. À imprensa disse que tudo foi uma armação e que ele é perseguido sistematicamente por não se submeter a uma ordem que julga ser inconstitucional, a de usar máscara. Que esse fato sirva para refletir quantos personagens que se comportam exatamente assim estão abrigados no nosso sistema judiciário, prejudicando inclusive os próprios colegas. Quem se vê acima dos outros e acima da lei jamais terá convivência pacífica com quem acredita que a lei é igual para todos.

Punir o desembargador é necessário mas não é suficiente. Hoje, durante a pandemia, as pessoas que estão decidindo os destinos de famílias sufocadas por um drama nunca antes vivido pela humanidade podem ser as que pensam justamente como ele. O sistema permite que sobrevivam e, enquanto não for mudado, continuará permitindo, seja ele punido como deve ou não. É necessário entender quais são as falhas que levam o Estado brasileiro a colocar na posição de fazer cumprir leis quem não acredita que deve se submeter a elas.

A carteirada não pode ser reduzida a uma exceção ou à personalidade do desembargador. É necessário levar a questão a sério e investigar onde estão as falhas no sistema que possibilitam que aconteça o injustificável. Sem isso, não haverá mudança nenhuma.

Em 2013, na Califórnia, a polícia atendeu a um chamado que parecia ser de acidente doméstico mas era um filme de terror. Gabriel Fernandez, de 8 anos, era torturado diariamente pela mãe e pelo padrasto há pelo menos um ano. Não faltaram denúncias e visitas de assistentes sociais e, ainda assim, ele foi espancado até a morte. O padrasto foi condenado à morte, a mãe à prisão perpétua. Todos os assistentes sociais envolvidos no caso foram a julgamento e acabaram inocentados. Mas, a partir dali, se questionou o sistema de proteção à criança da Califórnia. Não é por um erro individual que se chega a um resultado desses, é porque o sistema falha.

No ano seguinte, em 2014, foi formada a Blue Ribbon Commission on Child Protection (BRC), composta por diversos especialistas em infância, sistema judiciário, serviço social e congressistas. O objetivo era encontrar onde estão as falhas no sistema que levaram à possibilidade de que uma criança acompanhada por assistentes sociais acabasse morta depois de um ano de torturas. Foram feitas 15 audiências públicas e entrevistas com mais de 300 pessoas que participam de alguma forma do sistema de proteção social.

A BRC indicou, em 2014, um conjunto de 66 medidas que deveriam ser tomadas para evitar a repetição das falhas no sistema de proteção infantil da Califórnia. As soluções eram objetivas, como estrutura dos departamentos, interligação, treinamento, horário de funcionamento, formas de comunicação, registro e revisão. O que acontece quando uma criança morre por erro da Justiça no Brasil?

Eu conto e cito um caso real, ocorrido no mesmo ambiente onde trabalha o desembargador, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em setembro de 2015, um garotinho de 7 anos de idade, Ezra, foi encontrado esquartejado dentro de um freezer no apartamento da família, em São Paulo. A denúncia foi feita por um primo, que estranhou o sumiço da mãe, do padrasto e dos irmãos, que não apareceram para abrir o comércio do qual eram proprietários.

Lee Ann Fink e Mzee Shabani haviam deixado o corpo no freezer e fugido para a Tanzânia com os outros filhos. Eles haviam acabado de recuperar a guarda de Ezra, afastado da família por maus tratos. A decisão do juiz do TJSP foi contrária à opinião do Conselho Tutelar na época. As conselheiras tutelares deixaram claro que os conflitos entre mãe e padrasto eram constantes e, além disso, eles não entendiam ser errado espancar a criança, consideravam uma forma de ensinar. O menino estava machucado quando foi feito boletim de ocorrência que resultou em seu afastamento da família em outubro de 2014.

Qualquer que seja a intenção do juiz do caso, o fato é que ele contrariou a orientação do Conselho Tutelar, devolveu o menino à família e ele acabou esquartejado num freezer. Se isso não é motivo para o Tribunal de Justiça questionar onde estão as falhas no sistema, não sei o que seria. Ocorre que não questionou e nada mudou até hoje.

Eu questionei o TJ-SP na época. "A qualificação e a requalificação das equipes técnicas são feitas regularmente pelo Tribunal de Justiça. A Vara da Infância e da Juventude trabalha com prognóstico e não diagnóstico. O caso indicava que não haveria a revitimização da criança. Todas as cautelas foram tomadas para que a reaproximação do menino e seus pais ocorresse com o severo acompanhamento. Primeiro foram  autorizadas visitas no abrigo. Após alguns meses, pernoites. Depois de mais alguns meses é que o desacolhimento ocorreu, sempre com supervisão técnica e acompanhamento psicológico. Tudo indicava que a criança não sofreria mais qualquer tipo de violência. Infelizmente o prognóstico não se confirmou, mas isso não caracteriza omissão ou negligência por parte dos técnicos e da magistrada que era responsável pelo processo", foi a resposta oficial.

Se a equipe responsável por decidir o destino de crianças vítimas de violência acredita que "tudo indicava que a criança não sofreria mais qualquer tipo de violência" e, dias depois, ela aparece esquartejada num freezer, há algo muito errado. Eu sinceramente acredito que os envolvidos fizeram o que entenderam ser a melhor e mais justa decisão para o momento, com base naquilo que aprenderam e no sistema em que estão inseridos. Ocorre que o desfecho é injustificável, principalmente diante dos vencimentos dos envolvidos nessa história.

É apenas um exemplo. Tudo o que é humano é falho. Por isso, o sistema Judicial deve ter melhorias no sentido de minimizar os efeitos das falhas na vida do cidadão. Joga-se na conta do infortúnio ou da personalidade individual uma situação que é causada por outro problema, o do sistema que convive com o erro e não recompensa devidamente o esforço e o acerto. Ainda convivemos com as falhas que deixaram o menino Ezra à mercê de seus assassinos. Por quanto tempo conviveremos com as falhas que encorajam diariamente as carteiradas? Punir o caso que foi filmado e seguir com tudo funcionando do mesmo jeito não passa de enxugar gelo.

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