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A “demissão” da Lava Jato de SP é o retrato de um país conformado com privilégios
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Li inúmeras manchetes falando da "demissão coletiva" dos procuradores da Lava Jato de São Paulo e algo me parecia dissonante ali, só que não sabia dizer bem o que era. Percebi meu incômodo ao ver a manchete escolhida pela Gazeta do Povo: "Procuradores comunicam à PGR desligamento coletivo da Lava Jato paulista". Era isso!!! Não houve demissão e, o uso dessa palavra é o retrato perfeito de como o Brasil internalizou o conceito de privilégio.

Quando o cidadão comum se demite em nome de uma causa, ele arrisca o conforto da sua família, a segurança financeira e o futuro profissional. No caso dos procuradores paulistas, não há nenhum tipo de risco pessoal, eles apenas saem da Força Tarefa e continuam suas carreiras com todos os privilégios.

Conheço vários dos procuradores que tomaram essa atitude e tenho respeito por eles. São pessoas dedicadas, sérias e que realmente devem acreditar ter feito algo corajoso por viverem num universo paralelo absolutamente apartado da vida do cidadão comum. Estranho é o jornalista, que não goza da mesma estabilidade, levar essa conversa adiante dando a entender que os procuradores assumiram riscos pessoais como outros cidadãos. Não assumiram.

Suponhamos que você trabalhe em uma grande empresa, na área de compliance. De repente, essa empresa é vendida e os novos donos têm outras diretrizes de compliance, então trocam o diretor do departamento. O que o novo diretor considera ser o correto parece ser absurdo e leniente para você e sua equipe. Existe alguma chance de vocês simplesmente informarem a chefia que estão abandonando o barco porque discordam do novo diretor e terem seus empregos mantidos? Não, isso não teria o menor cabimento.

As carreiras jurídicas têm salários nababescos e estabilidade justamente para que seus integrantes possam lutar em nome do povo diante de arbitrariedades do governo de plantão. Se, ao ver uma dificuldade, abandonam o barco, por que estamos pagando essa fortuna toda?

Eu sei que todo integrante de carreira jurídica vai achar um absurdo completo o que eu escrevi, convivo com vários deles, de várias carreiras. Eles realmente acham que são injustiçados, que os salários são defasados, que trabalham demais. Há um elemento humano importante nessa visão completamente distorcida de mundo: nos medimos por comparação e as carreiras jurídicas públicas se desenvolvem num ritmo diferente das privadas.

No início, quando alguém passa em um concurso, ganha seguramente 4 ou 5 vezes o salário de todos seus amigos que optaram por trabalhar como advogados, na iniciativa privada. Ocorre que não há tanta diferença entre o salário fixo inicial e o final das carreiras jurídicas. E, quando chegam a um ponto em que têm mais experiência, começam a comparar-se com amigos que abriram grandes escritórios e faturam como grandes empresários.

Obviamente, a grande maioria dos advogados vai eternamente ganhar muito menos do que o salário inicial das carreiras jurídicas. Mas os promotores, procuradores, juízes e defensores, vivem esbarrando nas aparições midiáticas e sociais é com o outro grupo, o dos advogados famosos. É com eles, que têm qualidades profissionais profundamente diferentes das requeridas para servir o público, que se comparam. Sentem-se injustiçados. Tenho medo até de pensar o juízo que o cidadão comum faz dessa conversa toda.

São situações profundamente diferentes as de Deltan Dallagnol e dos promotores de São Paulo. O primeiro fez a opção que eu faria caso estivesse na situação dele e já fiz por inúmeros outros motivos: a família em primeiro lugar. Geralmente são mulheres que desaceleram a carreira pelos filhos, é importante termos homens que valorizam a família.

Eu li as 16 páginas do ofício em que os procuradores da Lava Jato de São Paulo pedem desligamento. Porque conheço as pessoas, tenho uma sensação da mais profunda tristeza. Difícil imaginar qualquer outro contexto profissional, público ou privado, fora das carreiras jurídicas brasileiras, em que fosse possível um grupo de adultos produzir aquelas páginas.

São procuradores e, aparentemente, desconfiam das motivações da nova chefe. Apresentam uma lista enorme de fatos, desde a tomada unilateral de decisões até a não utilização da mesa e do computador no espaço próprio que a Operação Lava Jato paulista conseguiu, para fundamentar seus pontos de vista. Eles sabem o que dizem melhor do que eu, não tenho nenhum elemento para questionar.

Meu questionamento é outro: se são procuradores e desconfiam que a chefe está de má-fé, têm a obrigação de persistir até provar isso ou verificar a inocência dela, em nome do povo brasileiro. Não é aceitável que desfrutem de tantos privilégios pagos pelo povo justamente para se meterem nessas encrencas e simplesmente lavem as mãos. A falta de senso de dever é desesperadora.

Na Constituição de 1988, o Ministério Público foi visto como uma instituição importantíssima para a garantia de direitos do cidadão. Vínhamos de um longo período em que isso não era lá uma prioridade. Construímos um monstrengo de poder que soma as funções do Ministério Público italiano com as dos parquet francês. Se, na ideia do constituinte, era uma forma de defender a cidadania de maneira intransigente, vimos que a condição humana não foi levada em conta.

As carreiras jurídicas foram montadas levando em conta todas as garantias necessárias para que seus integrantes brigassem de maneira intransigente pela lei, ordem e direitos dos cidadãos. Por outro lado, o que acontece quando simplesmente desistem disso por motivos estapafúrdios como uma chefe que empata o trabalho? Nada. Não foi imaginada a necessidade de reforçar o senso de dever e a noção de que aquelas pessoas estão em um pedestal para defender o povo, não por merecimento.

A imprensa - e aqui faço um mea-culpa - subestimou o peso que a vaidade tem sobre o senso de dever e de realidade dos servidores públicos. Equiparamos a autoridades, eleitas pelo voto popular ou referendadas por outros Poderes da República, servidores concursados que têm o dever de fazer por merecer as diversas garantias que lhes são dadas.

Se houve um "desmonte da Lava Jato", é a prova maior de que precisamos urgentemente rever o modelo das carreiras jurídicas no Brasil. Na Constituição de 88, optou-se por um modelo que imaginávamos funcionar, o de que garantir o conforto financeiro, férias generosas, aprimoramento profissional e entender problemas familiares seria o suficiente para arregimentar um batalhão de ferozes defensores da cidadania brasileira. Não funcionou.

Criamos uma casta, uma bolha de benesses e privilégios que quebra a alma até dos melhores, afasta do mundo real, faz esquecer a essência do dever de servir a cidadania. Sempre tive a certeza - e disse isso diversas vezes - que o sucessor de Dilma Rousseff, quem quer que fosse ele, desmontaria a Lava Jato. Errei. Nunca me passou pela cabeça que os próprios procuradores deixariam o Brasil na mão.

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