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A luta da militância trans para banir a palavra “mãe”
| Foto: Bigstock

Imagine que todas as pessoas de um país tivessem de mudar o uso da palavra "mãe" por causa de uma única pessoa que perdeu um processo judicial e agora recorre ao tapetão? Acontece que não é uma pessoa comum, é uma estrela da militância lacradora da Inglaterra, protagonista do documentário "Seahorse", cavalo marinho. Trata-se do único animal em que a gestação é feita pelo homem.

No ano passado, o documentário era peça importante da briga judicial de Freddy McConnel, que nasceu mulher, diz ser um homem trans mas, ainda assim, resolveu parar a transição hormonal para engravidar e ter filho. Fez um tratamento de fertilidade. No nascimento, pleiteou que seu nome constasse como pai, o que não foi permitido por ser a pessoa que deu à luz o bebê, portanto, a mãe. Entrou na Justiça e perdeu. Agora chegamos ao segundo tempo da briga: tirar pai e mãe dos documentos ingleses e substituir por "genitor 1" e "genitor 2".

É nesse contexto, em que mulheres passam a ser julgadas transfóbicas quando não querem ser chamadas de "pessoa que menstrua" ou "genitor 2" que a crítica lacradora brasileira recebe o novo livro da autora de Harry Potter, J.K. Rowling. Na Folha de S. Paulo, a manchete sobre "Troubled Blood" é mostrar o "feminismo limitado" da autora.

A definição do texto para "feminismo limitado" pode ser entendida como mulher que não obedece a militância trans. O exemplo é um clássico do machismo mais rastaquera: o vilão do livro é um homem que se veste de mulher e muita gente reclamou. Entendem que se trata de transfobia na ficção porque a autora comete desatinos transfóbicos como reclamar da troca da palavra mulher por "pessoas que menstruam". Todo o trabalho de uma das autoras de mais sucesso no mundo agora é julgado pelos progressistas exclusivamente sob essa óptica.

No caso da crítica no jornal brasileiro, temos uma pérola do machismo do século XXI. O texto diz que a autora teve a oportunidade de mudar a própria obra, mas preferiu abraçar um chavão, o de que não é transfóbica, defende as mulheres. Fico curiosa para saber o que essa turma pensa de um clássico de Alfred Hitchcock, Psicose. Norman Bates ser um transtornado que se veste de mulher e emula a própria mãe é transfobia ou não? Claro que não. A militância identitária não ataca a estatura intelectual de homens quando discorda deles, prefere outras táticas, é uma prática direcionada às mulheres.

O governo inglês já se pronunciou oficialmente dizendo que a palavra "mãe" não depende mais de gênero. Acompanhe que o caso é intrincado: se uma pessoa que biologicamente é mulher e fez até tratamento para engravidar se identifica como homem, então será reconhecida oficialmente como homem e mãe. O pronunciamento foi feito para acomodar a situação de Freddy McConnell, que continua reivindicando ter identidade masculina mesmo diante da decisão de fazer um tratamento médico para engravidar. Os advogados haviam até sugerido uma alternativa: criar a palavra "male mother", mãe masculina.

O presidente da Suprema Corte da Inglaterra, ao receber o pedido, lembrou que não é uma questão menor porque as palavras mãe e pai estão por toda a legislação inglesa, seria tudo invalidado? E questionou também "onde, em tudo isso, temos evidências do relato dos interesses das pessoas na sociedade que querem ser nomeadas como a mãe?", já que as mães virariam o genitor 2 provavelmente. Às vezes o genitor 1, vá saber.

Nos tribunais de verdade ainda há quem lembre da existência das mulheres e cogite que ser mãe e ser chamada de mãe sejam importantes para muitas de nós. É certo eliminar essa palavra porque uma única pessoa, com um caso que é a exceção da exceção, resolveu moldar o mundo à sua vontade. Há outros casos de pessoas que nasceram mulheres, se identificam como homens e resolveram engravidar na Inglaterra. Mas querer ter o título de pai ou proibir todo mundo que deu à luz de ser chamada de mãe é a novidade.

Na legislação brasileira, uma pessoa pode mudar de sexo nos documentos quando declara publicamente ter outra identidade. Não é preciso nenhum atestado médico ou psicológico, apenas uma declaração que jamais será confirmada. Tudo é feito na confiança porque é a nossa tradição. Já na Inglaterra, onde provavelmente há muitos malandros, a coisa é diferente. O "Gender Recognition Act", Ato de Reconhecimento de Gênero, atualizado este ano, exige uma infinidade de registros médicos e psicológicos, além de relatórios específicos para conceder uma transição. Além disso, se a pessoa for casada, precisa do consentimento do parceiro.

Com todas essas amarras legais, em um país com a cultura e a tradição dos ingleses, estamos no ponto em que toda a biografia de uma mulher passa a ser julgada de acordo com o quanto ela aceita que todos os registros linguísticos da palavra mulher sejam eliminados do vocabulário. Se não aceita, é condenada por transfobia no Supremo Tribunal da Internet. Aqui falamos de algo que realmente ocorreu com a autora de Harry Potter, avaliem em países com menos regras, mais malandros e lacradores mais animados. Por aqui, J. K. Rowling não tem mais nem obra, tem um "feminismo limitado".

O mais curioso dessa militância focada unicamente no controle da linguagem é que veste a carapuça com gosto e passa a usar o termo que antes só cabia na boca de misóginos ou machistas radicais: feminazi. É a tradução que muitos ainda dão ao acrônimo inglês TERF, Feministas Radicais Trans-Excludentes, um apelido que equivale a feminazi. Grupos feministas brasileiros já chamaram de feminazi quem não defende cegamente todo e qualquer capricho da militância trans, mas a realidade já provoca a revisão de conceitos.

Carol Correia, militante feminista conhecida na blogosfera brasileira, já aponta abertamente a distorção: "feministas radicais não apoiam a desumanização contra transexuais, do mesmo modo que nós não nos importamos com o que você e terceiros gostem ou o com o que vestem. Discordar teoricamente de alguém não é uma violência. O que nos ofende, contudo, é quando querem nossa aprovação, energia e o nosso apoio para com um lobby que tenta nos enfiar o falo goela abaixo dentro de em um espaço que demoramos anos para conquistar por causa da nossa vagina".

Algo considerado impensável até alguns anos atrás tem ocorrido devido ao radicalismo do movimento trans com as mulheres: a aproximação entre feministas e conservadores. Quais seriam as pautas em comum? Considerar o sexo biológico, luta contra operações de mudança de sexo em crianças, a necessidade de proteger mulheres e crianças nos casos de violência doméstica e o posicionamento sobre pornografia.

O primeiro passo foi dado há algum tempo pelo tradicional Think Tank conservador Heritage Foundation, que chamou as feministas de esquerda para falar sobre as preocupações com as consequências do "Equality Act" defendido pelo Partido Democrata, que equipara trans a mulheres em várias áreas de proteção. Nos últimos 4 anos, feministas que fizeram qualquer questionamento sobre reivindicações trans são taxadas de transfóbicas.

Em 2017, um trio trans espancou uma senhora de 60 anos que pretendia participar de um evento "feminista radical" em Londres. Nós, mulheres, conhecemos ladainha e desculpas há muito tempo. Podem inventar a teoria que quiserem, impossível fugir do fato que pessoas nascidas com o sexo masculino se sentem no direito de impor caprichos a pessoas nascidas com o sexo feminino. Em caso de negativa, vale até espancamento. O mundo já mudou tanto que nem os conservadores mais ferrenhos aceitam a imposição de ideias à força que a militância trans tem resgatado.

A defesa inconteste da agenda trans mesmo quando colide com direitos das mulheres está tirando muitas feministas da base de apoio ao Partido Democrata e colocando diretamente no colo dos Republicanos. A pauta que mais une os dois grupos é a licença para fazer cirurgias de mudança de sexo em menores de idade, algo que ambos repudiam. Pela primeira vez desde os anos 1970 o movimento em defesa das mulheres não ganha tanto destaque no Partido Republicano.

Nos últimos 50 anos, no mundo democrático, não se deu espaço público e legitimidade a movimentos que pretendem calar mulheres ou condicionar a dignidade humana das mulheres à aderência inconteste a qualquer tipo de ideologia. Eles existem, mas chegamos até a considerar impensável que fossem levados a sério. Agora, com os movimentos identitários, o desrespeito e os ataques às mulheres voltaram a estar na moda e ter quem os justifique. Hora de chamar os adultos à sala.

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