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A morte do menino Miguel e nossa falência moral
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Pense em um único aspecto que não é profundamente errado, injusto e distorcido no episódio que terminou com a morte trágica do menininho Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos de idade. Impossível. Tudo ali é profundamente errado, um enredo que seguramente marcaria com dor diversas vidas, só não se sabia quando e como.

Nas redes sociais, muita gente sente ter a obrigação de emitir opiniões sob pena de ser vista como má pessoa. Temos, nessa altura do campeonato, um número impressionante de penalistas, sociólogos, historiadores, antropólogos e, obviamente, justiceiros sociais. Cada um brada com mais força contra aquilo que lhe aperta o calo ou empunha a bandeira que crê ser mais favorável para sua imagem pessoal. Tanto faz.

Há, na cena da patroa apertando o botão do elevador e largando sozinho o menininho de 5 anos, algo ainda mais profundo do que todos os demais problemas gravíssimos: a falência moral. Que ser humano olha nos olhos de uma criancinha de 5 anos e não a vê como um anjo, um ser sagrado, como os próprios filhos? Muitos e esses monstros estão entre nós.

Eu sou mãe de um menino. Talvez você também tenha filhos ou sobrinhos ou ame muito uma criança. Impossível não pensar nos nossos pequenos olhando a foto do Miguel. É um caso que nos causa tristeza real, genuína, como se fosse com um conhecido. Muita gente está triste, engasgada, com raiva, querendo fazer algo, sentindo a frustração da impotência diante da tragédia.

O menino ia com a mãe para o trabalho, brincava com a filha dos patrões, o prefeito e a primeira-dama de uma cidade vizinha ao condomínio de luxo. A mãe, funcionária fantasma da prefeitura, desce para passear com o cachorro, ele quer ir atrás dela e corre até o elevador. A patroa aperta o botão do último andar do prédio, deixa o elevador se fechar e volta para o apartamento, onde estava fazendo a unha. O menino desde no 9o andar, tenta achar uma saída para ir atrás da mãe e despenca de 35 metros de altura. A mãe o encontra no chão, ainda vivo. Um vizinho, médico, tenta socorrer, sem sucesso. Miguel morreu aos 5 anos de idade.

Como uma pessoa que tem filhos trata assim uma criança que poderia ser um filho seu? Pessoas normais, com quem convivemos, fazem isso o tempo todo e não é algo da cultura brasileira, como muitos gostam de dizer. Precisamos estar atentos para realmente abrir nossos corações às criancinhas, todas elas, com amor e generosidade. Não é da nossa natureza e, muitas vezes, fazemos o mal que não queremos.

Convido você a uma reflexão que martela minha cabeça há muitos anos e é perfeita para que façamos em família durante o final de semana: como nós, adultos, tratamos as criancinhas que não são nossas? Depende da roupa que elas vestem, de quem elas são? Pode ser que dependa sim e muitos fazem sem perceber.

Este vídeo é de um experimento social feito na Geórgia, com uma atriz, que teve de ser interrompido no meio. Nem os organizadores imaginavam que as pessoas pudessem ser tão cruéis com as crianças como eram na realidade. Uma mesma menina, Anano, uma atriz treinada, é colocada em locais públicos como se estivesse sozinha. Na primeira situação, está bem vestida. Na outra, parece uma criança pobre. A diferença de tratamento é de cortar o coração.

Quando recebemos a notícia da morte do menino Miguel e de todos os aspectos que envolvem essa tragédia, adoramos pensar que somos profundamente diferentes dessa patroa. Somos mesmo? Vivemos no mesmo país que ela, na mesma sociedade em que ela e o marido até ontem eram pessoas de status e sucesso. Fossem profundamente diferentes daquilo que aceitamos, jamais seriam quem são.

Temos, no Brasil, diversos problemas de estrutura social, desigualdade, injustiças e impunidade. Mas nada disso pode ser entendido de forma dissociada da condição humana e da torpeza moral. Por que toleramos que criancinhas sejam tratadas como algo menos que sagrado? Não sei. Sinceramente, não sei. O fato é que toleramos e temos tolerado dia após dia, corpo após corpo de criancinha.

Se queremos um país decente, precisamos começar a escrever uma nova história, a tratar de forma diferente as novas gerações. Que este novo começo seja pelas criancinhas. Cada um de nós e as nossas famílias podem, dentro do seu alcance, passar a observar o quanto é sagrada a existência de cada criança que cruza o caminho das nossas vidas.

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