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A naja de Brasília e o prazer de não cumprir regras
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Que tipo de ficção conseguirá competir com a nossa realidade? O caso da naja de Brasília, que parecia o máximo do absurdo, era apenas o começo de uma história que pode ainda ter muitos lances. A necessidade de manter relações próximas com animais extremamente perigosos lembra o sucesso da Netflix, "Tiger King", que aqui se chamou "A Máfia dos Tigres". Joe Exotic tinha em comum com os nossos personagens da vida real o absoluto desprezo pelas regras, leis e normas de convivência social.

Uma discussão comum na sociedade é sobre a necessidade de ter em casa cães de raças notadamente agressivas. A cada tragédia decorrente de um acidente com esses cães, voltamos à discussão. No caso da última semana, partimos para um universo completamente diferente, o de animais não domesticados e peçonhentos, cuja manutenção é cara e difícil. Tudo era feito fora da lei, fora das condições mínimas para a saúde dos animais e sem nenhuma preocupação com danos causados a terceiros. É difícil conseguir compreender a lógica desse universo, mas ele existe e fica na nossa corte.

A primeira notícia, que replicou freneticamente na última quarta-feira, era que um estudante de veterinária havia sido picado por uma cobra naja, que criava ilegalmente, e estava entre a vida e a morte. Como a serpente é proibida no Brasil, não há estoque de antídoto para o veneno. A única dose disponível estava no Instituto Butantã e foi enviada para o estudante, que entrou em coma rapidamente. O veneno era poderosíssimo.

De toda a história, a parte mais reveladora sobre o comportamento dos envolvidos é o destino da cobra, para cujo veneno não havia mais antídoto no Brasil. Os pais do estudante disseram que estava com um amigo dele. O amigo deu várias pistas falsas à polícia até que funcionários públicos descobriram a cobra numa caixa no Pier 21, shopping famoso pela ampla praça de alimentação. Foi levada ao zoológico de Brasília, onde ninguém podia manusear a serpente devido à falta do soro.

Se a serpente é tão perigosa e não havia mais antídoto contra o veneno, capaz de matar em poucas horas, de onde vem a decisão de deixá-la em um local público, onde circulam pessoas o tempo todo? Não houve consequência para este ato.

No mercado ilegal, a tal naja chega a valer R$ 20 mil, segundo diversos órgãos da imprensa. Portar a serpente rende uma multa, da qual se tentou escapar abandonando a caixa num shopping. Ocorre que não era apenas aquela a serpente, havia mais outras tantas. Na última quinta-feira, outras 16 cobras foram encontradas em um haras próximo a Brasília. O mesmo amigo que abandonou a naja colocou as serpentes em caixas semelhantes e as acomodou numa baia de alimentação de cavalos. No dia seguinte, mais uma cobra foi encontrada na casa do pai do rapaz internado.

A polícia expandiu as investigações porque se viu diante de um caso bastante grave. Uma das serpentes mais venenosas do mundo entrou ilegalmente no Brasil e estava nas mãos de pessoas que lidam com isso da forma mais inconsequente possível. Acontece que não eram só eles. Na mesma sexta-feira, por meio de denúncia, chegou-se a um local onde um homem, que não tinha relação com o primeiro grupo, criava animais exóticos. Ele tinha licença para criar uma jibóia e um teiú, espécie de lagarto. Mas tinha também dois tubarões, outras 4 jibóias, duas pítons e uma moréia.

A necessidade de viver uma proximidade tão grande com o perigo tem relação direta com uma vida sem regras nem lei. O maior sinal de status da casta que manda é não ter de se submeter a regras, mas isso cria uma vida desestruturada, vazia, sem emoção, em que nada é suficiente. Animais perigosos impõem limites que a sociedade não impõe.

O rapaz internado ficou em coma por dois dias, foi tratado com soro antiofídico, já saiu da UTI e está na enfermaria, recuperado. Deve prestar depoimento e terá de pagar as multas pelos animais que mantinha ilegalmente. A família importou mais soro antiofídico dos Estados Unidos e doou ao Instituto Butantã o que restou. As denúncias de posse ilegal de animais aumentaram bastante em Brasília assim que a notícia da naja ganhou o noticiário.

É possível dizer que essas pessoas todas apenas amam esses animais? Difícil. Nenhum dos animais resgatados estava em bom estado de saúde. Tecnicamente, todos sofriam maus tratos. Há quem goste de animais exóticos e essas pessoas sabem o custo e o empenho necessários para dar condições dignas a apenas um deles fora do habitat natural. Os casos são de acumuladores de animais, sem nenhum compromisso com o bem estar deles.

O negócio do tráfico de animais é antigo e um debate que todo brasileiro conhece muito bem. Mas, será que este caso é o debate a que estamos acostumados quando falamos das nossas espécies em extinção? Creio que não. O tradicional é que o traficante mire em dinheiro apenas e submeta animais a suplícios para vendê-los a quem se encanta ou obter algo de valor, como couro, marfim e penas. O jogo aqui envolve necessariamente o perigo e a violência dos animais envolvidos.

Em Tiger King fica difícil saber se é mais chocante a história toda da convivência com os tigres ou a convivência humana das pessoas enfiadas no zoológico e na vida de Joe Exotic. O apetite pelo medo, os rompantes de agressividade, o desrespeito a todo tipo de limite e a crença de estar acima das regras eram uma constante. Em Brasília, não precisar cumprir regras e oferecer risco aos demais é sinal de status. Nos casos desbaratados até agora, já sabemos como essas pessoas tratavam os animais. Resta saber como tratam os outros seres humanos.

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