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deputado luis miranda de mochila
Deputado Luis Miranda mostra que falar contra Bolsonaro rende engajamento| Foto:

"Insanidade é fazer a mesma coisa esperando resultados diferentes", disse Albert Einstein. Isso é bem mais fácil de entender do que a teoria da relatividade, mas nem por isso a gente quer entender. Quando eu vi Luis Miranda dando entrevista dizendo que tinha uma gravação do presidente, meu coração já palpitou. Eu vi esse filme antes e arrumei uma encrenca danada.

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Lembram do Joesley? Pois é, a história toda começou com a brilhante ideia de noticiar que ele tinha uma gravação, detalhar o conteúdo da gravação mas ninguém ouvir a gravação. Na época, eu não quis noticiar sem antes ouvir a fita. Foi um bate-boca, mas meu ponto é outro: essa discussão ainda existia. Não existe mais.

O professor de psicologia da NYU Jay Jan Bavel diz que redes sociais e veículos de comunicação já se enredaram a ponto de virar um único modelo de negócio, o do ultraje. Os meios de comunicação conseguem audiência hoje via redes sociais e nelas, o que viraliza é quando um grupo ataca outro ou uma pessoa do outro. O caso Luis Miranda é emblemático sobre a migração desse processo para a imprensa e a mídia.

Se alguém me diz que tem uma gravação ou um documento com o potencial bombástico do que foi anunciado, eu vou ficar louca para ver. Mas eu só vou afirmar que essa pessoa tem a gravação e o documento depois de ver e me certificar de que é verdadeiro.

O espaço para ficar de bravata é a rede social. Se o deputado quer mostrar a gravação e os documentos ao público, fazer uma denúncia embasada, aí sim a imprensa e o Congresso Nacional devem dar atenção. Mas, de forma prática, temos um jogo que ninguém entende.

Ainda não sabemos nem se esses documentos existem ou não, mas é clara a intenção de falar sobre eles o máximo possível. Qual seria a razão? Também não sabemos. Para isso, o deputado tem suas redes sociais caso queira só a bravata mesmo. Tem também a tribuna da Câmara, caso entenda que deve falar publicamente dos documentos mas só mostrar aos seus pares.

O deputado Luis Miranda conseguiu ocupar um espaço gigantesco na imprensa nacional e nas redes sociais com uma informação que ninguém sabe se é verdadeira e nem fez esforço para comprovar. Não estou prejulgando o parlamentar devido às inúmeras acusações que pesam contra ele, mas pensando no público. Como eu vou afirmar algo que eu não sei se é verdade nem por qual intenção foi dito? Isso foi feito com a maior naturalidade e em larga escala.

Agora entramos numa situação que a cada dia supera o roteiro mais mal escrito que possamos imaginar. A tal gravação ainda não surgiu. Aparentemente, o irmão do deputado trocou de celular e não tem mais as mensagens pressionando com relação à vacina. Mas daí o deputado vai nas redes sociais dele e diz que não tem é o celular, porque trocou, mas tem as mensagens. Ninguém viu as mensagens até agora.

Parece incompetência ou desleixo e teríamos muita sorte se realmente fosse porque para isso já sabemos o remédio. A diretora do centro do MIT que pesquisa desinformação diz que trata-se de um processo dos últimos 20 anos. Segundo Joan Donovan, a entrada do jornalismo na internet e depois nas mídias sociais promoveu mudanças profundas na sociedade.

A primeira tentativa de que o jornalismo fosse viável economicamente na dinâmica da internet é o paywall à moda antiga. Ocorre que era a primeira vez em que você tinha uma barreira financeira até informação de qualidade e meios de produzir informação gratuita disponíveis a todos os cidadãos. Grupos que jamais tiveram voz na mídia surgem e isso é bom. Ocorre que também vêm com tudo grupos a quem jamais a sociedade dava voz porque são perigosos.

O exemplo dado pela acadêmica é da formação dos grupos antivacina, que transitam por ideologias políticas e, por isso, são um fenômeno interessante para análise. Eles vão ganhando adeptos semelhando dúvidas, um método que se tornou clássico. Não convencem de que vacinar é ruim, geram a dúvida, o pensamento sobre esta possibilidade, questionamento que não era feito.

Ao longo de 20 anos, esses grupos se consolidam, aprendem a lidar com a tecnologia e a manter suas audiências. E eles passam a gerar muito dinheiro para as redes sociais. Os 12 grandes produtores de conteúdo antivacina dos EUA ganharam US$ 36 milhões em 2020 com essa produção. As redes sociais ganharam US$ 1,1 bilhão com o conteúdo produzido por antivacinas no mesmo período. É no meio disso que está a imprensa.

Hoje, a imprensa tradicional distribui conteúdo pelas mídias sociais e ganha tráfego via mídias sociais, como observa o professor de psicologia da NYU, Jay Van Bavel. Ele explica que isso já torna dificílimo conseguir separar hoje o que é um fenômeno social provocado pelas redes e o que é provocado pela imprensa. Hoje, o conteúdo de imprensa segue a lógica do algoritmo.

A lógica do algoritmo é que vão fazer sucesso, portanto viralizar, aqueles conteúdos em que se faz um ataque a um grupo oposto ou indivíduo do grupo oposto. A informação bem apurada não gera engajamento, a não ser que ataque alguém. Já a informação mal apurada pode gerar engajamento desde que ataque alguém. Numa indústria em transformação, parece que o caminho acaba ficando natural.

Artigo comparando engajamento de mídia mainstream com mídia opinativa conservadora
Artigo comparando engajamento de mídia mainstream com mídia opinativa conservadora

A linha castanha que você vê neste gráfico é o engajamento de mídia do Daily Wire, de Ben Shapiro. Há quem o classifique erroneamente como fake news, mas o psicólogo da NYU não comete esse engano. É preciso ao dizer que não se trata de fake news, mas de informações apresentadas de forma diferente e apaixonada, onde a prioridade é o ultraje e o posicionamento pessoal de quem informa.

As linhas meio apagadas abaixo, em azul, são as mídias tradicionais como The New York Times, The Washington Post, NBC News, CNN e Fox News. Não tem nem como comparar o engajamento de todos esses veículos com o que Ben Shapiro consegue com seu estilo provocador. Quanto é mérito dele e quanto é o algoritmo que força essa situação por decisão da plataforma? Ninguém sabe.

Sabemos é que pouco a pouco o ultraje como modelo de negócio chega à mídia tradicional. Luis Miranda é o retrato pronto e acabado desses novos tempos. Pouca coisa dá mais audiência e causa mais frisson do que o presidente. Uma dessas coisas é alguém batendo em Jair Bolsonaro. De forma consciente ou inconsciente, essa lógica está tomando conta do jornalismo.

A questão é que esse movimento também afeta a sociedade e tem consequências na democracia. Ele interferiu no andamento de uma CPI e na forma de conduzir os trabalhos. Tem se tornado comum a coleta de depoimentos que não estão embasados em documentação, o que já foi raríssimo, mas gera um engajamento enorme. Já surgiu até uma nova geração de comentadores ao vivo de CPI nas redes sociais, interagindo com os senadores.

Eu também já achei tudo isso muito libertário e positivo um dia, sou uma otimista incorrigível. Creio que realmente será positivo quando estivermos conscientes de que não há comunicação direta com os poderosos nem liberdade de expressão em rede social. Tudo é mediado pelo algoritmo, tudo só funciona na lógica criada pelas Big Techs e não esclarecida para nós. Jogamos o jogo sem saber as regras.

Ao favorecer quem se manifesta contra o grupo oposto, as Big Techs criam uma lógica social fundada no ultraje e no justiçamento. Os ciclos de notícia passam a ser o ultraje contra alguém ou algum grupo. Em seguida, ele é substituído pelo ciclo de justiçamento contra quem promoveu o ultraje e assim sucessivamente. No meio da pancadaria, a primeira vítima é a verdade.

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