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A peste e o duelo entre egoísmo e compaixão
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Conhecemos pessoas e governos por suas prioridades diante das tragédias. Nessas ocasiões ficam mais que evidentes nossas batalhas internas entre instinto e moral. A compaixão é um fundamento moral e o egoísmo é um instinto humano, um dos mais primitivos, central para o desenvolvimento dos bebês e tão imaturo quanto o raciocínio deles. Bebês acreditam ser o centro do universo, já que desconhecem o universo e o conceito de humanidade ou sociedade.

A partir do momento em que o ser humano compreende a ideia de humanidade e o conceito de sociedade é que está pronto para aprender compaixão. Muitos confundem compaixão com empatia, mas trata-se de coisas diferentes. Enquanto a empatia é a capacidade de tentar compreender a posição e os sentimentos do outro, a compaixão vai além, é a vontade genuína de fazer algo para aliviar o sofrimento do outro, ainda que não nos atinja.

Compaixão se ensina, é um fundamento moral que só encontra sentido quando prática. Seja no cristianismo ou na filosofia, não há hipótese de que essa moral possa ser exercida por exercícios teóricos ou discursos, depende da prática, da convivência com os demais seres humanos.

As religiões têm grande importância como guias éticos da humanidade e perderam muita influência por uma série de fatores nos últimos séculos. Mas a ética proposta pelas grandes religiões monoteístas, sobretudo o cristianismo e o judaísmo, pemanece presente também nos pensadores da moral secular, que inclusive reconhecem a fonte da qual bebem. No centro do duelo entre o indivíduo primitivo e aquele capaz de reger-se por regras morais está a compaixão, vivência plena do amor.

Nos Evangelhos, muitas das ações de Jesus são motivadas pela compaixão, palavra que aparece constantemente principalmente nos livros de Lucas e Mateus. "Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; pelo contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor.
Toda a lei se resume num só mandamento: "Ame o seu próximo como a si mesmo"
, diz Paulo em Gálatas 5:13,14. O egoísmo é uma vontade da carne, um impulso do instinto humano. A compaixão é o amor ao próximo como a nós mesmos, a noção de humanidade e da importância da vida do outro.

É dessa fonte que bebem inúmeros filósofos da moral humana. Schopenhauer, em "O mundo como vontade e representação", assume beber da fonte do cristianismo e estabelece que a compaixão, chamada de ética compassiva, é o fundamento moral das relações humanas.

Immanuel Kant defende, na conhecidíssima "Crítica da Razão Pura", que só existe compaixão na interação real entre seres humanos, sendo impossível apenas no campo teórico ou discursivo. Para o filósofo, só existe moral na realidade, quando se comprova a possibilidade de decisões serem pautadas pela moralidade e não vencidas pela vontade e pelo instinto.

A grande questão é como dominar a vontade e o instinto, tão fortes e significativos para a evolução da espécie humana e nosso desenvolvimento nos primeiros momentos da vida. Há 3 propostas diferentes, de acordo com Schopenhauera: arte, compaixão e ascese. A ascese é um conceito que aparece também na filosofia grega e nos valores cristãos, um estado permanente de domínio da moral sobre a vontade e os instintos, na busca pela verdade e o desenvolvimento espiritual.

A dualidade entre carne e espírito, entre vontade e moral, entre instintos e princípios é uma constante da história da humanidade. É possível que princípios, moral e espírito se sobreponham aos instintos, vontade e carne? Sim, isso é provado com milhões de atos reais de compaixão pelo mundo todos os dias ao longo da história.

Um dos trechos bíblicos mais conhecidos pelos cristãos troca em miúdos o raciocínio complexo dos filósofos modernos. Também na carta aos Gálatas, Paulo fala com clareza da dualidade entre instinto e moral.

"Por isso digo: vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam. Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão debaixo da lei. Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem;
idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes.
Eu os advirto, como antes já os adverti, que os que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus.
Mas
o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei. Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos" - Gálatas 5:16-24

Vivemos a idolatria da autoindulgência, em que todas as transgressões à vontade são justificáveis, em que o outro vale menos do que os meus. Falta de controle emocional, dos instintos, da agressividade e do egoísmo podem ser vistos como sinônimos de força e virtude no mundo atual. Não passam, no entanto, do triunfo dos impulsos primitivos sobre a ética, algo típico dos fracos.

Temos, tanto no campo político quanto no campo social, uma falsa associação entre progresso e sepultamento da cultura e da moral. De acordo com algumas visões, seria progressista dar vazão a todos os desejos da carne e dos instintos enquanto não se tem controle nenhum sobre o próprio exercício da moralidade, da ética e da compaixão. É o triunfo da mediocridade, a vitória da fraqueza de princípios e de espírito sobre a possibilidade de nobreza humana. O problema é que nos acostumamos tanto a essa ideia que já somos incapazes de repudiá-la como deveríamos.

Johann Baptist Metz, teólogo alemão falecido no final do ano passado, rival histórico do papa emérito Bento XVI e apontado por ele,como pai das ideias que deram origem à Teologia da Libertação, acabou por condenar a falta de pluralismo e de apego moral do progressismo europeu.

Em setembro de 2005, teólogos, filósofos, sociólogos e outros pensadores reuniram-se em Portugal para debater o futuro do cristianismo e Deus no século XXI. Estavam todos eles diante do Tratado Constitucional da União Europeia, onde prevaleceu o laicismo francês, muito diferente do Estado Laico Colaborativo que vivemos no Brasil. Embora no imaginário de muitos progressistas aqui exista uma laicidade à francesa, em que toda religião é banida do espaço público, esse discurso só se sustenta pela idolatria aos instintos: fingir ter razão é mais importante que ter disciplina para buscar conhecimento.

Na época com 76 anos, Metz, que havia sido o ícone religioso para os progressistas, chamou a laicidade francesa de fundamentalista e antipluralista por simplesmente impor aos Estados algo que não faz parte da cultura. "Parece que a Europa perdeu a sua memória pura e simplesmente, como se se tivesse tornado vítima daquela amnésia cultural progressiva, que aparentemente muitos europeus consideram ser o progresso autêntico" , disse o teólogo sobre o tratado de 2005 expandindo o conceito francês de laicidade para toda a União Europeia. Lembrou ainda que o conceito de Estado Secular só foi possível de se implementar justamente na Europa judaico-cristã.

Metz passou a pregar uma forma concreta de intervenção política dos cristãos: o exercício da compaixão, defendido como "mística de compaixão enquanto mística política".

Quinze anos se passaram e a discussão, que ecoa pela humanidade desde a Grécia Antiga, permanece atual. A compaixão, que só existe enquanto exercício prático, nunca enquanto apenas ideia ou discurso, tem uma forma muito concreta de manifestação no ambiente político. Enxergar primeiro o sofrimento e depois o pecado é a prática da compaixão no ambiente político.

Diante da peste, o que interessa mais às autoridades: apontar o dedo para os erros dos outros ou expressar em atos a compaixão pelas milhares de famílias que sofrem? Esse é o corte concreto, está aí a divisão entre quem se rege pela moral cristã e quem se deixa dominar pela força dos instintos mais egoístas.

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