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Equipe de perícia da Polícia Federal brasileira atuou na investigação a pedido de autoridades paraguaias.
Equipe de perícia da Polícia Federal brasileira atuou na investigação a pedido de autoridades paraguaias.| Foto: Estevam/Ccomsex/Exercito

Há uma discussão antiga, que tem voltado com força devido a vários filmes que circulam pelas redes sociais: a diferença de tratamento da polícia a cidadãos que moram em bairros pobres e ricos. Temos um problema grave e antigo de violência policial, mas ele não será resolvido com discussões lacradoras, que ignoram fatos e sustentam-se em preconceitos.

A brutalidade de policiais nas periferias, sobretudo quando agridem e matam crianças é injustificável. Creio que as pessoas não são o que pregam, são o que toleram. É aflitivo ter a consciência de que somos uma sociedade que tolera o assassinato de crianças inocentes pelo Estado. Evidentemente, é muito difícil encontrar quem seja condescentente com a prática, mas precisamos reconhecer que nosso nível de indignação diante da barbárie é discreto.

O Estado brasileiro é tradicionalmente implacável com a grande maioria que não tem dinheiro, prestígio e poder. A face mais evidente é a que sangra, a que suprime vidas, a que destrói famílias. Mas o Estado brasileiro também é injusto e implacável com a grande maioria do povo em todas as suas outras atuações de imposição de regras. É como diz a piada clichê: "o fulano se desculpou por desviar milhões, mas experimenta você atrasar uma parcela do IPTU".

Temos duas classes de cidadãos brasileiros: os que cumprem regras e os que não precisam cumprir regras. Essa realidade existe tanto entre os cidadãos comuns quanto no funcionalismo público. Por isso é uma falsa simetria comparar a atuação do policial no bairro rico e no bairro pobre.

Quem, no Poder Público, pode se eximir de seguir regras? Formalmente, ninguém. Na realidade, ouvi uma vez que cada um pode ir até o limite do perigo que representa. Detentores de mandatos eletivos, integrantes dos primeiros escalões do Poder Executivo e concursados das carreiras jurídicas têm o poder de causar muito estrago na vida de alguém se assim desejarem. Dessa forma, seguem regras quando querem e são punidos com muita parcimônia quando extrapolam de maneira vergonhosa.

É apenas uma teoria, mas verifique os fatos e ela passa a fazer muito sentido. Qual o destino de deputados, senadores, ministros e ex-presidentes envolvidos com desvio de milhões? E o que aconteceu quando figuras que ocupam esses cargos estão envolvidas em crimes bárbaros? O tratamento diferenciado e privilegiado que recebem é sempre o principal comentário do cidadão comum, que imagina qual seria o castigo dele caso cometesse um desatino.

Essa casta privilegiada do Poder Público é condescendente com quem tem dinheiro, prestígio ou poder econômico na sociedade civil por razões de conveniência. Os que possuem cargos eletivos por uma relação de co-dependência, os que são concursados porque são em sua maioria provenientes deste mesmo círculo social, o dos inatingíveis. Como recebem alguma educação, conseguem justificar com tecnicalidades as trocas de gentilezas. Não seria indecoroso caso aplicassem o mesmo tratamento aos demais cidadãos, mas não aplicam. Com quem está fora deste círculo, são implacáveis.

E aí é que está o nó da questão policial: os policiais, os seres humanos de farda, não são da classe dos inatingíveis. A maioria vem de famílias humildes e os salários equivalem a auxílios-moradia da casta privilegiada do funcionalismo. Será o Estado brasileiro realmente dá aos policiais o poder de impor regras aos inatingíveis?

Imagine que um policial militar, um praça, resolva dar voz de prisão àquele homem que ficou famoso pelo vídeo xingando todo mundo na mansão em Alphaville, condomínio de luxo em São Paulo. Mesmo que cumpra seu dever, siga a lei, o trate com todo o respeito, será mesmo que não sofrerá as consequências de mexer com um inatingível?

Reclama-se muito de leniência nos processos disciplinares das Polícias Militares e realmente há falhas. Mas falo aqui de outra hipótese, de um processo movido por alguém que tem fôlego financeiro para contratar bons advogados e entrar na Justiça, o naco do Estado brasileiro controlado pelos inatingíveis. Imagine o confronto entre o milionário cheio de amigos importantes e um policial militar em início de carreira que fez tudo certo mas desagradou o ricaço. Não vejo duas possibilidades de final da história, infelizmente.

O debate sobre atuação da polícia não pode deixar de levar em consideração a dinâmica social do Brasil e a consciência coletiva de que certos grupos não precisam seguir regras jamais. É essa a raiz de uma avalanche de distorções na aplicação da lei.

É possível argumentar que bandidos também não cumprem regras. Realmente não, vivem disso. Traficantes, estupradores e homicidas obviamente violam todas as regras formais e morais. E aqui chegamos à dinâmica perversa da existência das castas de intocáveis no Brasil. Você já deve ter visto em telejornais diversas prisões de traficantes e entrevistas coletivas à imprensa das polícias Militar, Civil, Rodoviária e Federal.

Qual é o padrão? Os policiais explicam o que aconteceu, exibe-se o que foi apreendido - geralmente drogas e armas - e são apresentados os criminosos. Há a cena clássica dos que tentam cobrir o rosto, se esconder em viaturas mas será inútil porque a identidade deles é pública e logo aparecerão em todos os órgãos de imprensa. Os policiais podem, inclusive, dar detalhes da investigação e da biografia dos suspeitos presos.

O que ocorre quando os traficantes são da casta dos intocáveis da sociedade brasileira? Gostaria de raciocinar o que cada um de nós faria se estivesse no lugar do policial, com a origem familiar dele e o salário dele, ao se deparar com uma quadrilha de traficantes de drogas pesadas formada por membros da casta dos intocáveis. Pode ser coincidência, mas acaba de acontecer e não foi exibido um preso. Aliás, nenhum nome foi dito.

A brutalidade de policiais que não seguem as regras não é diametralmente oposta ao servilismo nas abordagens nos bairros ricos. Há que se adicionar a esse caldeirão de problemas o fato de que os policiais geralmente moram nos bairros onde as abordagens são violentas e os filhos deles não têm carimbo da polícia na testa.

Temos dois problemas a atacar e a raiz dos dois está na normalização do descumprimento de regras. Todo caso de brutalidade policial começa no descumprimento das regras de treinamento, qualquer que seja a desculpa que se queira arranjar. Sempre há uma desculpa. Quem defende o mau policial vem com uma narrativa de filme da sessão da tarde e quem defende bandido diz que ele é vítima da sociedade. Ainda cola?

O outro problema é a existência de castas de inatingíveis na nossa sociedade, algo que grita aos olhos. Pessoas que têm dinheiro, prestígio ou poder, na sociedade civil ou no Poder Público, não recebem punição na mesma medida em que o cidadão comum. Cada caso diferente é justificado com um detalhe, uma tecnicalidade, um discurso empolado. Essa tática está chegando ao limite e causando uma rejeição às instituições.

É uma notícia muito triste a quem se acostumou a discursar lindamente mas viver como se fosse melhor que os outros ou valesse mais: tem limite. Todos os países desenvolvidos do mundo já passaram por processos semelhantes e não há como ter um projeto de país sem princípios e regras que valham para todos. É hora de sair do Brasil "sabe com quem você está falando?" para o Brasil "quem você pensa que é?".

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