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A receita de Taiwan contra a polarização política
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Você também é da turma que não aguenta mais a polarização nas redes sociais? Saiba que a coisa já foi muito além em alguns países. Há 5 anos, em Taiwan, a temperatura de uma discussão sobre impostos subiu tanto que manifestantes invadiram o parlamento e o ocuparam por semanas. O evento foi chamado de "A Revolução do Girassol", já que a flor era símbolo dos protestos.

Havia motivo para tanta paixão. Se aprovado, o projeto poderia ter colocado Taiwan mais próxima da China, como aconteceu com Hong Kong, que agora vive um clima terrível de instabilidade e violência com a repressão do Partido Comunista Chinês.

Mas, diferentemente dos nossos políticos, que usam as redes sociais para botar mais gasolina no fogo, os de Taiwan buscaram uma solução para discutir temas importantes de forma mais clara.

A solução foi ousada: o governo contratou alguns hackers que participaram da invasão do parlamento. Havia vários movimentos da sociedade civil que utilizavam a internet para se organizar, com destaque para o de Audrey Tang, que foi nomeada Ministra Digital de Taiwan.

O governo precisava entender duas coisas:

1. Por que o tom das discussões políticas cotidianas estava subindo tanto a ponto de provocar reações exacerbadas no dia-a-dia, com passeata atrás de passeata sem que o país vivesse nada tão diferente.

2. Por que as pessoas proeminentes na política e nos movimentos sociais passaram a buscar o conflito em vez de buscar formar consenso em temas específicos para resolver a vida da população?

As explicações para o fenômeno foram encontradas na gamificação, uma metodologia que tem sido muito utilizada recentemente para educação, marketing e treinamentos em empresas. A estratégia de colocar elementos de jogos no processo de aprendizado aumenta o engajamento e faz com que a pessoa aprenda mais rápido.

Essa estratégia consiste em inserir elementos dos jogos em outros universos. Por exemplo: sistema de pontuação, ranking, recompensas, objetivo a alcançar, realização de missões, formação de equipes, trabalhar em equipe. Dessa forma, você motiva as pessoas a agir no sentido que é estratégico para a empresa, o aprendizado ou a qualificação profissional.

O que isso tem a ver com as discussões políticas? Elas pegam fogo agora nas redes sociais. São empresas gigantescas, plataformas cujo negócio é a coleta, estruturação e venda de dados fornecidos gratuitamente por milhões de usuários. Para conseguir isso, as plataformas também usam a gamificação.

A estrutura, no caso, também se assemelha aos jogos de cassino, já que o objetivo é deixar a pessoa na plataforma e passando dados o maior tempo possível. Os dois sentimentos humanos mais eficientes para promover esse engajamento são ódio e medo.

Pode haver recompensa (likes, seguidores), missões (levantar um tema) e equipes que tenham base em causas muito nobres. Mas as mais bem sucedidas são aquelas feitas para atacar e dividir. O "sucesso" é ficar mais tempo plugado, objetivo do jogo para as plataformas.

O governo de Taiwan percebeu que a estrutura da informação nas redes sociais é o que estava acirrando os debates e resolveu fazer uma plataforma que muda essa estrutura, o v-Taiwan.

Há uma mudança na estratégia de gamificação. Se, nas redes sociais, o conflito é necessário para o sucesso (ficar muito tempo conectado) na nova plataforma o consenso é necessário para o sucesso de conseguir formar consensos sobre os temas que serão decididos pelo governo de Taiwan.

A primeira prova de fogo da plataforma v-Taiwan foi a regulamentação do Uber no país. Em vez de deixar o povo se matando nas redes sociais, o governo de Taiwan abriu sua plataforma para que os usuários discutissem os temas pontuais da regulamentação. A Ministra Digital de Taiwan, Audrey Tang, relatou em um texto todos os detalhes técnicos da experiência.

Primeiro, os usuários de redes sociais tiveram acesso a uma live com acadêmicos, especialistas da indústria de transportes e representantes de 7 partes interessadas: a Associação dos Taxistas de Taipei, Taiwan Taxi, Uber, Ministério dos Transportes, Ministério da Economia e Ministério das Finanças.

As opiniões das pessoas que estavam participando do debate na v-Taiwan passaram a ser agrupadas por consensos em torno de temas específicos. Não era possível responder posts dos outros: isso frequentemente é usado no debate político apenas para xingar e trollar. As postagens que eram feitas só para causar, sem conexão com o tema específico, por perfis robóticos ou repetitivas eram escondidas no mapa gerado pela Pol.is.

Eram as mesmas pessoas e o mesmo debate das redes sociais, mas se conseguiu discutir a questão civilizadamente porque a estratégia de gamificação mudou: em vez de recompensar quem causa conflito, a recompensa era por ajudar na solução.

O serviço de Uber foi regulamentado em Taiwan, mas todas as partes tiveram de fazer algumas concessões:

1. A política internacional de seguro para os motoristas teria de ser informada ao governo e, se necessário, revelada para a opinião pública.

2. A Uber concordou em treinar todos os motoristas para que obtivessem registros e licenças profissionais.

3. O UberX, padrão de luxo, se legalizado em algumas regiões paga as mesmas taxas dos táxis.

4. A Associação de Táxis de Taipei se comprometeu a trabalhar em conjunto com a plataforma Uber e fazer um acordo com os termos da convivência.

5. A Taiwan Taxi Fleet prometeu oferecer serviços melhores desde que possa aumentar preços, regulando com a demanda do mercado.

Semanas antes, a Justiça de Taiwan havia negado as apelações do Uber para ser isento das multas por funcionar ilegalmente e poder voltar a trabalhar. O Primeiro-Ministro declarou o seguinte: "Nós lamentamos e temos compaixão por eles; não nos sentimos alegres com a nossa habilidade".

Não parece algo que um político brasileiro falaria. É uma referência direta a uma citação dos Analectos de Confúcio. Falando da escolha de juízes, ele aconselha que o perfil ideal é aquele que, uma vez tendo conseguido estabelecer a verdade, tem mais pena do criminoso condenado do que orgulho de si ou do seu julgamento. Autoridades que agem assim dão paz ao povo.

"Os governantes falharem em seus deveres e as pessoas, consequentemente, estão desorganizadas por um longo tempo. Quando você encontrar a verdade sobre alguma acusação, lamente e tenha compaixão e não se sinta prazer com suas próprias habilidades" - diz Confúcio.

O sistema adotado para avaliar as opiniões mostra que existem mais lados do que parece haver nas discussões de redes sociais e mais detalhes que são importantes para várias pessoas. Esses pontos, cruciais na solução política para questões da vida prática, acabam ofuscados pela gritaria.

As discussões temáticas continuam na plataforma mesmo depois que alguma decisão é tomada pelo governo. Conforme opinam sobre algum tema específico, as pessoas passam a ser agrupadas num quadro mais perto dos perfis que pensam a mesma coisa. Como não há respostas a postagens, é impossível se agrupar apenas para atacar alguém.

No caso Uber x Táxis, um ano depois, com base nas discussões dessa plataforma, o governo fez uma nova regulamentação para equilibrar a concorrência:

1. Táxis não têm mais de ser pintados de amarelo.

2. Os taxistas podem se organizar por apps desde que não acabem com o sist4ema atual.

3. Os apps de transporte devem fornecer online a identificação do carro e do motorista, tarifa estimada e nota do cliente.

4. Corrida a preço fechado passa a ser reportada ao Ministério das Finanças.

Embora pareça que a criação de consenso em temas tão específicos é orgânica e as pessoas vão automaticamente raciocinando e tomando decisões, a estrutura da plataforma é feita de acordo com o método de "Conversação Focada" de Brian Stanfield, que é feito em 4 passos:

1. Objetivo: Fatos - O que sabemos?

2. Reflexivo: Sentimentos - Quais são nossas reações?

3. Interpretativo: Ideias - Que insights temos?

4. Decisório: Ações - O que devemos fazer?

Após a votação do Uber, o v-Taiwan já foi usado para guiar os políticos em mais 11 leis e há mais 8 na fila esperando para votação no parlamento. Os temas foram os mais diversos, como regulação das fintechs, novas leis de revenge porn, venda de bebida alcoólica pela internet e veículos de transporte alternativos.

As deliberações do público no v-Taiwan não são necessariamente seguidas pelos políticos, mas eles passam a ter a dimensão real do que pensa o povo, fator que se perdeu com as redes sociais.

A maioria das pessoas pode achar que bate-boca ou xingamento em rede social é bobagem, afinal elas não se dedicam a essa prática e nem têm contato com quem faz. Na verdade, a maioria das pessoas tem mais o que fazer e usa pouco as redes sociais, preferencialmente para se conectar com família e amigos.

Ocorre que a polarização e agressividade dão a políticos, formadores de opinião e jornalistas a impressão de falsos consensos e trazem à pauta deles debates inflados artificialmente, que interessam apenas a pequenos grupos. Quando se avalia que um "trending topic" do Twitter, por exemplo, é uma coisa importantíssima para o país, se leva a rede social para o topo da pauta política e social.

Essa distorção tem prejudicado a democracia, aprofundando a polarização e tornando o debate político superficial, baixo e agressivo. É essa a correção que a plataforma faz: deixa claras para os políticos e jornalistas quais são as opiniões e prioridades das pessoas reais.

Muito cedo para dizer que é a solução para a polarização política, já que o sistema ainda não foi utilizado para debater nenhum projeto que realmente divida o povo de Taiwan ou cause engajamento emocional exacerbado. De qualquer forma, é bom saber que já há soluções do tipo sendo pensadas. Temos esperança.

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