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A saga do juiz que pretende tirar a guarda de quem não vacinar os filhos
| Foto: Albari Rosa/Foto Digital/Gazeta do Povo

Um único funcionário do Estado regiamente remunerado é capaz de fazer mais estrago na vacinação do que todos os canais de YouTubbers antivacinas juntos. Temos um campeão da matéria. O negacionismo do bem ganha apoio de associações e figurões do Judiciário sob a desculpa da boa intenção do magistrado. Danem-se a população, a vacinação e a realidade. A prioridade é o parque de areia antialérgica sinalizar virtude. Explico o caso específico.

Pensei várias vezes em dar ou não o nome do magistrado em questão. Resolvi não fazer. Em uma entrevista na CNN, o juiz teve a brilhante ideia de dizer que podem perder a guarda dos filhos os pais que não os vacinarem. O casal gratiluz progressista que entrou no STF para não vacinar filho tem a guarda até hoje. A Justiça paulista não tirou a guarda nem dos pais violentos que acabaram esquartejando o próprio filho (conto o caso neste artigo). Mas, no caso da COVID, vão tirar a guarda sim porque o ECA manda. Ah, está bem.

Ainda não consegui entender qual a intenção do magistrado ao ameaçar tirar guarda de filho das pessoas. Optei por não publicar o nome para não ajudar no efeito esperado da indignação, uma série de ataques e até ameaças. Falar em obrigatoriedade de vacina já prejudica a vacinação, faz com que os reticentes ou desconfiados dêem crédito aos antivacinas. Imagine o efeito de ameaçar tirar os filhos das pessoas. De duas, uma: ou o juiz é antivacina e isso foi proposital ou o juiz é negacionista científico e acha mesmo que ameaça convence alguém a dar vacina em filho.

Meu principal arrependimento profissional é ter incentivado tanto a expressão pública de juízes, desembargadores, promotores e procuradores. Subestimei o poder da vaidade e da celebridade sobre a psique humana, é total. Por que uma pessoa que tem estabilidade vitalícia, salário nababesco e o poder de mandar prender e soltar quer aparecer? Não sei, só sei que isso torna-se mais importante que o ofício e que o cidadão. Foi o caso.

Acredito que o juiz teve boas intenções. Diante do risco de crianças terem seus direitos violados, quis agir. Dizem que juiz pensa que é Deus e jornalista tem certeza. É verdade. Por isso nem um nem outro consultam quem é do ramo na hora de falar publicamente sobre emergências em Saúde Pública e uma pandemia. Confesso que eu mesma só consultei porque fui regiamente paga para fazer a campanha de erradicação da pólio em Angola ter resultado efetivo. Gosto do meu ego, mas gosto mais ainda de dinheiro.

Como todos os temas na era da hipercomunicação e numa sociedade digital, o problema do juiz não é o conteúdo, é o contexto. Digamos que estivesse em uma sala de aula ou num debate filosófico sobre a lei. Normal debater ali se é certo e proporcional tirar a guarda de quem não vacina os filhos. Essas discussões são necessárias e fazem parte da formação profissional. Mas é outra coisa dizer isso numa TV aberta e ficar postando na internet. Faz muito bem para a vaidade, mas as pessoas sentem-se ameaçadas e o tiro sai pela culatra.

Vivemos a apoteose da superficialidade. Parecer ser é muito mais importante do que ser ou fazer qualquer coisa. Aparentemente, muita gente considera importantíssimo sair debochando de quem tem dúvidas sobre vacina e ameaçando prender e tirar guarda de filho. É importante para ter qual consequência na vida real? Elogios, likes, compartilhamento, notoriedade. E talvez menos vacinados, mas danem-se as crianças.

É verdade que a Justiça já decidiu que os pais têm de vacinar os filhos quando as autoridades de Saúde recomendam e há vacina disponível. Também é verdade que uma das penas previstas, a mais grave no papel, é mexer com a guarda. Agora eu te pergunto: quantos dos nossos direitos e deveres estão apenas no papel? Se essa for uma tentativa de efetivar direitos, é a mais desastrada possível. Como sou chata, explico ponto a ponto os motivos dentro da minha área de expertise.

Primeiro vamos à comunicação jurídica ou aos princípios da comunicação do Judiciário Brasileiro. Ocupei cargo com essa função no STF e fiz treinamentos de magistrados em escolas judiciárias do Brasil e exterior, inclusive treinamentos obrigatórios nos cursos de formação inicial de juízes. Fiz a documentação administrativa sobre a entrada do Judiciário brasileiro nas redes sociais e os primeiros treinamentos sobre uso de redes para juízes, em 2008. (Só me apresentando porque, para juiz, provavelmente eu nem sou gente até um ministro de Tribunal Superior dizer que eu sou.)

Qual é o princípio fundamental da comunicação do Poder Judiciário do Brasil? Aproximar a Justiça do cidadão. Dizer na TV e em rede social que vai tomar a guarda dos filhos dele no meio de uma pandemia aproxima o juiz do cidadão? Acho que não exatamente. Ou seja, se imaginou cumprir sua função social de magistrado, fez o avesso da proposta. Ah, mas a intenção é boa. Ele é pago para fazer, não para intencionar.

Digamos que seja um incentivo para que esses casos passem agora a ser tratados dessa forma. Quando eram os gratiluz de classe média-alta da elite paulistana passando doença evitável para os coleguinhas, não se tratava assim. Aliás, nunca me pediram a carteira de vacinação do meu filho em nenhuma escola particular a vida toda. Desconheço esse pedido fora da escola pública. Já fui chamada de nazista por exigir a medida - pedir a carteirinha, não tirar a guarda - depois de um surto de coqueluche nos colégios mais caros de São Paulo.

Outro princípio da comunicação pública é o da transparência, explicar como funciona o poder na prática. Agora estamos no meio de uma pandemia, tudo é muito novo, impera a confusão. Mas o que foi efetivamente feito com o povo que não queria vacinar os filhos e foi até o STF brigar por isso? Agora, o juiz expôs o nome da família na conta dele no Twitter. Perderam a guarda? Claro que não. Mas a Justiça ordenou que as crianças fossem levadas para vacinar e foram.

Sob o ponto de vista da comunicação do Judiciário, a ideia brilhante de botar guarda de criança no meio de papo sobre vacina descumpriu os principais objetivos. Nem aproximou a Justiça do cidadão nem explicou o que realmente ocorre e como o Judiciário decide em casos semelhantes. Bom, mas esse juiz ainda pode julgar assim, né? Não mais. Antecipou qual seria a decisão dele, não pode mais julgar casos do tipo. Belíssimo trabalho pago com dinheiro público.

Associações do Judiciário e figuras públicas de alto calibre expressaram apoio ao magistrado. São contra as ameaças e ataques que ele sofreu após perder a melhor oportunidade de ficar calado na vida. Eu também sou contra isso e quem me acompanha sabe. Esse comportamento de matilha, com ameaças e pressões públicas para quebrar o espírito das pessoas pode até dar vitórias momentâneas, mas arruína o tecido social.

Ser contra ataques é uma coisa, ser a favor das declarações do juiz é outra. Já ouvi o argumento de que ele, no momento, falava como cidadão. Tivesse visto minhas aulas, saberia que isso "non ecziste", como dizia o saudoso Padre Quevedo. Em teoria, juízes, policiais, políticos, médicos e jornalistas, por exemplo, podem postar nas redes sociais como cidadãos. Na prática, entende-se que a postagem é parte do trabalho da pessoa, não tem como dissociar o cargo do ser humano.

Na prática, por que o juiz foi mandar essa de tirar guarda de filho? Tenho uma aposta: vício. Não em poder, vício em dopamina. Quando reconhecida por um grupo, a sensação de demonstrar superioridade moral é tão prazerosa quanto um orgasmo. Libera hormônios de prazer. Embora não tenha feito nada que preste pela vacinação, pelas crianças e pelo Judiciário, o juiz é visto como quem fez isso pelo grupo ao qual pertence. Está recebendo apoio e likes, postando sem parar sobre o assunto sem nem se importar com as consequências no mundo real.

Logo no início da pandemia, fiz um artigo falando sobre o surto de papais-sabe-tudo que teríamos no debate público. Quem tem voz e poder não pode mais sustentar o luxo da ignorância sobre a convivência digital. Precisamos de autoconhecimento e de conhecimento para analisar as consequências dos nossos atos. Todos podemos cair na tentação da sinalização de virtude. O problema é quando o virtuosismo moral passa a ser mais importante que a vida real. É o caso.

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