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Estátua da Justiça, que fica em frente ao STF
Estátua da Justiça, que fica em frente ao STF| Foto: Gil Ferreira/SCO/STF

A anistia ampla, geral e irrestrita, como toda história que a política brasileira veste de boas intenções, é muito mal contada e custa caro demais ao país.

O debate político hoje naturaliza o conceito de que a ideologia torna um ser humano melhor do que outro e, nessa condição, ele tem "direitos especiais", inclusive de agredir gratuitamente, apelar ao auto-elogio ou apontar o dedo para o outro fingindo infalibilidade.

Todos nós pecamos, erramos, mudamos, nos arrependemos, voltamos atrás, pedimos perdão, reparamos erros e perdoamos. Somos humanos e precisamos ter consciência da nossa condição. Ocorre que no Brasil criou-se a ideia do perdão coletivo artificial de quem não quer ser perdoado porque sequer admite que errou ou que é falível.

Não foi essa a intenção primeira da Lei da Anistia, a 6683/79, feita por uma comissão de notáveis liderada por um dos grandes nomes da política nacional, Teotônio Vilela. Político de direita, tradicional da ARENA, fez história quando aderiu, em 1974, ao projeto de Petrônio Portella, seu conterrâneo, para uma abertura democrática gradual.

A anistia que concedia a comissão liderada por Teotônio Vilela não atendeu a todas as reivindicações dos movimentos pela anistia dos presos políticos mas foi considerada suficiente para pacificar o país. Quem venceu a queda de braço? A lei foi mudada 6 anos depois.

A lei aprovada pelo Congresso Nacional em 1979 anistiava "a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes". Ocorre que estavam fora da anistia os que cometeram episódios de violência como atentados pessoais, sequestros, terrorismo e assalto. Esses continuaram presos e boa parte chegou a ser julgada.

Nosso caráter é aquilo que fazemos quando ninguém está vendo. Obviamente durante este período turbulento houve quem, por razões muito íntimas, tenha se aproveitado da confusão para dar vazão às fantasias mais tétricas do fundo da alma. Guerras e convulsões sociais são cenários ideais para quem despreza a vida ou tem prazer com a dor alheia. A torpeza da alma é democrática. Houve, tanto dentro do governo quanto nos movimentos revolucionários gente que, com a desculpa da causa, viveu suas fantasias mais podres.

Os que cometeram excessos completamente desnecessários e inexplicáveis deveriam ter sido julgados? No início da década de 80, com a revelação dos horrores em centros de tortura, começou a ganhar corpo a narrativa de que era preciso evitar o "revanchismo" no Brasil. Por outro lado, a demanda também atendia a quem cometeu atos inexplicáveis dentros dos movimentos revolucionários, mas queria poder tocar a vida vestindo a fantasia de resistência democrática que não foi.

Quem não castiga o lobo mata o cordeiro. A nova legislação, que anistiava não os crimes políticos, como subversão ou opinião, mas todos os crimes de sangue, foi a semente da justificativa para tudo e a exigência de perdoar quem se julga acima dos demais.

Na Emenda Constitucional 26/85 foi feita uma salada legislativa do mesmo tipo que se serve cotidianamente na política brasileira. O ato que convocou a Assembleia Nacional Constituinte tinha o que na política se chama de "kinder ovo", um artigo surpresa sobre tema completamente desconexo, que seria muito polêmico caso editado onde deveria, em separado.

A anistia passou a ser “a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares”, e aos autores de crimes políticos ou conexos, e "aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis", de acordo com a Emenda Constitucional 26/85.

O que foi exatamente a mudança? Crimes como tortura, terrorismo, sequestro, atentado pessoal e assalto não seriam mais punidos caso o reú fosse servidor público, militar, sindicalista ou direigente de organização estudantil. Criamos a casta dos inimputáveis, cujos excessos se exigiu que o país perdoasse sem que eles reparassem ou pedissem perdão.

Outros países da América Latina tomaram caminhos diferentes. Quem ordenou ou cometeu excessos, aproveitou-se do caos para viver fantasias sádicas, considera ter direito de subjugar outros seres humanos, crê ser melhor que os demais foi chamado à responsabilidade. O perdão foi dado diante do pagamento da dívida com a Justiça, após o arrependimento verdadeiro ou a reparação.

Impor um perdão coletivo a quem não pediu perdão, não reconhece que errou, insiste nos erros e julga-se melhor que os demais seres humanos é algo típico da hipocrisia que gostamos de cultivar. Perdão não é, jamais vai ser.

Ao criar na arena política a casta dos inimputáveis, aqueles que por sua posição social e sua crença política podem cometer qualquer torpeza, distorcemos completamente a moralidade deste ambiente. Essa lógica do monopólio da virtude acabou, em 40 anos, por estender-se à sociedade, aos intelectuais, aos acadêmicos, aos comunicadores. Precisamos mudar essa cultura.

Ao aderir a uma ideologia, um partido ou até mesmo a um líder que considera sagrado, há seres humanos que passem a considerar sem dignidade a vida e a história de quem não faça parte desse grupo. Nós, por força de lei, legitimamos essa ideia. Nossa casta dos inimputáveis, os privilegiados por dinheiro, prestígio ou poder com profundas convicções políticas tudo podem em nome do que acreditam.

É imoral exigir das pessoas que simplesmente esqueçam as torpezas de quem sequer admite que errou. Temos, como sociedade, a obrigação de trazer os adultos à responsabilidade. Todos somos falíveis, erramos. A nossa casta dos inimputáveis terá de aprender que não é perfeita, que é humana como os demais - e não acima dos demais.

A lógica que hoje rege o fanatismo político no Brasil é a da desumanização, que atinge tanto o rival quanto o próprio grupo. Os amigos são acima do bem e do mal enquanto os adversários são lixo, não chegam a ser pessoas nem merecem respeito. Até o radicalismo tem diversos graus, mas a raiz está na nossa hipocrisia e no medo do conflito.

Evitamos o conflito de trazer à luz os criminosos - de todos os matizes ideológicos - para evitar o revanchismo. Foi aí que o plantamos. Vivemos o revanchismo entre os mesmos dois pólos ideológicos até nas conversas mais triviais, até nos perfis do Tinder.

As soluções mágicas são especialmente tentadoras para o Brasil. Ignorar algo para que se resolva é um argumento que surge frequentemente no debate político. Precisamos mudar. Não há adultos inimputáveis e nem recompensa para omissos e covardes.

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