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Após escândalo machista nos EUA, Sleeping Giants finge defender mulheres no Brasil
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"Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil", cravou Millôr Fernandes. O Brasil também é o refúgio preferido, de acordo com os filmes de Hollywood dos anos 80 e 90, dos que pretendem recomeçar a vida sem o peso da reputação que fizeram por merecer. Temos casos famosos como Ronald Biggs, que viveu confortavelmente por aqui após o assalto ao trem pagador e o mafioso Tommaso Buschetta, que refez a vida com uma jovem brasileira.

Adotar velharia como novidade e limpar reputação é especialidade da casa. Por isso o Sleeping Giants se mete, por aqui, a bancar o defensor de mulheres e da reputação de empresas. Nos EUA, a fundadora saiu do projeto denunciando machismo e já inventou um outro jeito de que anunciantes e veículos se encontrem de acordo com seus princípios.

Em julho, houve um ruidoso pedido de demissão da fundadora do projeto, Nandini Jammi, que disparou críticas e prints mostrando o comportamento predatório de seu ex-sócio Matt Rivitz. Ela postou um longo relato pessoal questionando se a decisão de roubar as ideias dela e escanteá-la, foi por ser mulher, por ser de origem indiana ou por falta de caráter mesmo. Qualquer que seja a resposta, ela é mulher, indiana e recomendou a todos os que se preocupam com machismo e racismo o desengajamento imediato do Sleeping Giants.

Nandini Jammi chegou a dar uma entrevista em maio à revista Exame dizendo que o grupo dos EUA não é responsável pelo brasileiro, que foi criado de forma autônoma, mas eles rezam na mesma cartilha. “Só soubemos da página depois que ela já estava criada e fomos procurá-los para dar algumas diretrizes. Mas não poderíamos comandar essas páginas em outros países, não sabemos as especificidades da cultura de cada lugar”, disse a fundadora que abandonou o Sleeping Giants à revista Exame.

A julgar pelo que eu li do relato de Nandini Jammi, os Sleeping Giants brasileiros aprenderam direitinho o método do fundador. Enquanto falam que defendem mulheres, se desdobram em esforços para pisotear e escantear mulheres na vida real. No Brasil, até pessoas que se julgam feministas ainda acham que o Sleeping Giants defende mulher. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome.

Fiz contato com Nandini Jimmi e pedi autorização dela para traduzir o relator completo, mas ela preferiu que não e não autorizou a publicação. É um direito dela que respeito. O relato público esta em inglês aqui. O método parece com o que aplicaram comigo nas redes sociais e, em alguns meios, chama-se de gaslighting, expressão que vem da peça de teatro Gas Light, de 1943. Nela, um homem quer achar um tesouro em casa sozinho e se livrar da esposa, então decide convencer o mundo que ela é louca.

O ponto da peça que originou a expressão "gaslighting" é quando o marido corta o gás que abastece as luzes da casa para usar só a do sótão na procura do tesouro. Quando a mulher percebe e o questiona, ele nega, diz que não aconteceu nada e ela está vendo coisas. Todo o relato da fundadora do Sleeping Giants é coalhado dessas situações. No meu caso específico, reclamei da tentativa de intimidação nas redes sociais. Os anônimos simularam um pedido de desculpas em que negaram intimidar e dizem "ter apenas feito uma pergunta sobre o meu posicionamento". Detalhe: no mesmo tweet da pergunta, eles postaram o link do artigo com o meu posicionamento.

Agora novamente fazem o comportamento característico, segundo a psiquiatria, dos estratagemas de sociopatas. Transgridem costumes, violam leis, abusam das pessoas mas têm lábia e tentam minimizar o que fizeram, comparando a coisas mais leves. Os anônimos dizem "apenas perguntar o posicionamento de empresas", quando chantageiam essas empresas pelas redes sociais com exigências diretas. Há quem acredite.

Outro ponto é a rapidez de mudança na indústria da internet, que não foi acompanhada pelo Sleeping Giants. A ideia de criar o movimento parte de uma questão real que ainda se tenta resolver. Nandini Jammi já fundou com Claire Atkin outra empresa com uma solução bem mais avançada para marcas, agências e veículos de comunicação, a Check my Ads. É uma forma inovadora de fazer o casamento entre os princípios de uma marca e o tipo de discurso que ela patrocina. O melhor: não recorre a anonimato, chantagem nem a esculhambar mulher em rede social.

Os anúncios em redes sociais trazem um benefício enorme para o mercado da comunicação: métricas precisas. Mas, como toda nova tecnologia, há ainda inúmeros pontos a ajustar. O principal deles é que os algoritmos das redes sociais são programados de uma forma que direciona a maioria dos cliques e anúncios para o pior lixo que se possa imaginar, num volume tão grande que já sentimos a tensão na sociedade. Não é por maldade nem de propósito, há uma explicação financeira.

O negócio das redes sociais não é informação, é vender publicidade direcionada aos clientes certos. Escrevi detalhadamente sobre diversos aspectos desse novo mercado aqui na minha coluna da Gazeta do Povo e no livro Tratamento de Choque. Isso gera uma mudança importante no mercado publicitário que é a ausência de relação entre anunciante e veículo, já que todo mundo que posta algo virou um "veículo" na definição técnica. Surge então uma questão nas duas pontas, a de anunciar em algo que é contra os valores da marca ou ostentar um anúncio que é contra os valores do veículo.

O problema fica ainda mais grave porque as redes sociais dependem de estimular a radicalização em qualquer tipo de tema para maximizar lucros. Para conectar uma marca com a pessoa que dará o clique de compras, é preciso recolher o máximo de informações possíveis da pessoa. Portanto, a prioridade é manter a pessoa conectada e interagindo. Como se faz isso? Direcionando a cada um o conteúdo que nos provoca mais emoções excitantes, entre as quais estão medo, ódio e indignação.

Em alguns anos, qual foi o resultado? Quem mais cresce nas redes é quem mais enfia o pé na jaca em qualquer situação. Exemplo prático para você testar em casa: 70% dos vídeos do YouTube são vistos por recomendação da plataforma, ou seja, o que passa automaticamente depois que você achou o que queria ou aquele colocado na sua primeira página. Faça qualquer busca, qualquer uma. Lá pelo quarto vídeo você já estará vendo alguém que vai considerar maluco. Os seguintes vão piorando. A gente acha absurdo e compartilha. Está feito o circo e é preciso desmontar essa lona.

Uma vez, o YouTube cismou de colocar anúncios de um prostíbulo nas minhas transmissões. As explicações técnicas eram sofisticadas, mas o resultado concreto é que um monte de gente tinha o print com o meu rosto e o banner de um prostíbulo. Como ninguém quer essa situação, surgem várias iniciativas de lapidar o mercado, entre elas o Sleeping Giants dos Estados Unidos.

Qual era a ideia? Utilizar algo que estava muito em voga até uns 5 anos atrás, que era a militância por impulsionamento e enxame, numa ação de mostrar a empresas em que buracos seus anúncios eram automaticamente enfiados. Não era difícil, por exemplo, que uma indústria farmacêutica acabasse gastando rios de dinheiro anunciando em transmissões de canais anti-vacina sem ter a menor ideia.

Antes de todos esses escândalos políticos internacionais de fake news, a gente acreditava que número de cliques ou volume de postagens indicavam real mobilização da sociedade. Talvez realmente indicassem mais porque as tecnologias de automatização e as estratégias de mobilização eram mais precárias. O fato é que juntava-se a indignação como fato de várias empresas serem surpreendidas ao ver que seus anúncios estavam até em lugares que as atacavam frontalmente.

Os Sleeping Giants justificavam seu anonimato porque se voltavam contra sites picaretas, criados só para promover absurdos, a melhor forma de ganhar dinheiro nas redes. Ocorre que as próprias redes sociais também estão trabalhando em mecanismos para que os anunciantes tenham controle sobre as verbas. Obsoleto, o Sleeping Giants tenta sobreviver mudando de estratégia: sob o escudo de um discurso moral, ataca empresas e indivíduos sem explicar o nexo entre fala e ação.

Não vou debater o viés ideológicos dos fundadores. É óbvio que há um viés, mas não a forma como tratam mulheres não segue a ideologia que pregam. Aqui falamos de viabilidade financeira. As redes sociais já estão ajustando seus algoritmos pressionadas por vários governos no mundo e também criaram mecanismos muito interessantes de filtros de anúncios tanto para marcas quanto para os veículos tradicionais que fizeram canais.

A tecnologia avança para que muito rápido ninguém anuncie em site picareta sem querer e nenhum veículo receba anúncio de picareta automaticamente. Que papel sobra para o Sleeping Giants? Patrulha. Em vez de avisar empresas que elas patrocinam sem querer negócios suspeitos, os anônimos agora querem decidir quadro de funcionários, punições administrativas e relações comerciais de empresas reais.

Nandini Jammi, a fundadora do Sleeping Giants escanteada pelo sócio, já deu o passo além na tecnologia. A empresa dela, Check My Ads, continua na mesma esfera de atuação, a de detectar dissonânica e casualidade na relação entre anunciante e veículo. Isso é feito como um serviço contratado pelas próprias empresas, agências, marcas, influencers e veículos de comunicação. O foco é diferente e muito mais inovador: verificar quais são as melhores oportunidades de investimento em consonância com os valores da empresa.

Claro que também há o outro lado, o de explicar novas formas de atuação num mercado tão dinâmico e quais são as ações que podem colocar uma marca em risco. A empresa faz manuais de atuação dos profissionais e também treinamentos para uma atuação eficiente num mundo de extremos. E nós ainda estamos andando de Sleeping Giants. Por isso me ufano do meu Brasil: o mundo nos dá um foguete, mas continuamos agarrados ao Gurgel.

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