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Aula de geografia ou beatificação do MST? Opine.
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Dizem por aí que o brasileiro é muito bom de iniciativa mas péssimo em terminativa. O debate sobre doutrinação no ensino é uma das amostras mais bem acabadas da veracidade dessa afirmação. Reduzir a questão à ideologia do professor e ter a ideia brilhante de colocar adolescentes para questionar os próprios professores são emendas piores que o soneto. Não resta dúvidas de que temos um problema, mas a raiz dele é mais profunda.

Demonizar a política não vai resolver o problema da doutrinação, pelo contrário, vai piorar. Imaginar que, por ter uma ideologia política, o cidadão viva 24 horas em torno dela e trabalhando por ela é ideia de quem não convive muito com gente. A imensa maioria das pessoas tem ideologia política mas não faz dela a prioridade no trabalho nem nas relações de amizade, afetivas e familiares. Por que apenas os professores seriam diferentes?

Temos focado em controle de conteúdo, falar ou não de ideologia, o que funciona como colocar um band-aid numa cirurgia de peito aberto. A raiz do problema é que, cada vez mais, a academia tem permitido que se substitua por militância o conhecimento e as verdades científicas. Não é importante ensinar a descobrir, mas ensinar a ser ativista.

O processo, que já se arrasta por algumas décadas, tem relação com o papel importante que acadêmicos, universidades e estudantes tiveram em diversos processos de mudança social e conflitos políticos ao redor do mundo. Essa participação é legítima e o debate sobre ideologia, política e atualidades no espaço educacional também. O que não se pode é submeter os conteúdos ensinados ao crivo ideológico. Os casos que revoltam muita gente não se devem à ideologia, mas à possibilidade de substituir ensino por aula de militância.

Exemplos práticos são a melhor forma de deixar clara a diferença entre alguém que tem ideologia e trabalha como professor de alguém que submete os conteúdos que ensina ao crivo da própria ideologia e enxerga a militância como único objetivo do seu trabalho. Haverá professores de todas as ideologias e alunos de todas as ideologias, que podem debater e divergir. Mas há casos em que se confunde escola ou universidade com cursinho de formação de movimento político.

O que você acha de falar do MST nas aulas de Geografia? Antes de responder, lembre: o problema não é o conteúdo. Vou demonstrar a diferença entre estudar um fenômeno social e transformar a Geografia numa escolinha pró-MST. Infelizmente, o segundo caso não é isolado, é parte de um processo.

Na década de 70, o geógrafo francês Yves Lacoste, membro do Partido Comunista Francês desde 1948, levou aos jornais uma discussão interna da academia, a existência de uma "geografia crítica". Logo se tornaria um dos pais da ideia de que não existe neutralidade científica na Geografia, já que esse conhecimento necessariamente serve a alguém. Ele ficou conhecido no mundo todo com um artigo no jornal francês Le Monde em que mostrou a estratégia dos Estados Unidos de bombardear os diques que abasteciam a população civil durante a Guerra do Vietnã. Logo depois escreveu o livro "A geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra". Depois trocou o título para "A geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra", já que o primeiro dava a impressão de que geografia não serve para mais nada.

Marxista, ele defendia que esses pontos de vista também fossem incorporados ao estudo da Geografia, mas já alertava para o risco de substituir as explicações geográficas por teorias de Marx. Apesar de ser crítico do capitalismo e propor abertamente uma "pedagogia militante", nem o próprio Yves Lacoste aprovava o que hoje tem sido comum, substituir as disciplinas acadêmicas por militância. A ideia do geógrafo era a de adicionar visões de mundo já existentes à única então utilizada para refinar o conhecimento geográfico, tendo sempre em primeiro lugar o conhecimento.

Atualmente, há propostas claras de transformar o estudo em formação ideológica, sem nenhuma base científica que justifique. Melhorar a visão dos alunos do Ensino Médio sobre o MST e libertá-los do "processo de alienação dos sujeitos, produzido pela classe dominante" são objetivos publicamente debatidos para a aula de Geografia.

Um trabalho recente, apresentado como parte do processo de obtenção do título de Especialista em Ensino de Geografia, defende tudo isso e muito mais. Foi publicado por um periódico acadêmico da UEM, Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, por um mestrando da UEL, Universidade Estadual de Londrina. O título "Perspectivas para a abordagem da Geografia Agrária no Ensino Médio" não dá ideia do que se defende no artigo. Vamos a alguns trechos:

" O conteúdo ministrado nessa disciplina, deve ser elaborado tendo a finalidade de romper com o processo de alienação dos sujeitos, produzido pela classe dominante."

"Na atual fase da expansão capitalista no mundo, o professor de geografia é exigido a se posicionar frente às desigualdades sociais inerentes a esta forma de organização da sociedade e seus desdobramentos nos sistemas de ensino, precisando se colocar numa posição de enfrentamento e fomento de um ensino legitimado no campo social."

" Ademais, tanto trabalhadores rurais, quanto da indústria nas grandes cidades, possuem em comum a marginalização, ocasionada pelo capitalismo."

" A abordagem dos conteúdos relacionados à geografia agrária precisa superar o caráter, meramente, descritivo e de apresentação de dados, como ainda é feito, de forma recorrente, na didática de muitos professores de geografia"

" O ensino de Geografia possui valores e ideologias da classe dominante, para qual a escola foi projetada, ocultando em diversas áreas a realidade, sendo, simplesmente, descritiva e naturalista, separando o ser humano da natureza como se não fossem dialéticos"

" Nesse sentido, a pesquisa realizada por Ayoub (2009) sobre a satanização do MST na mídia, constatou que existem padrões de manipulação da grande imprensa, como a ocultação, fragmentação, inversão e indução nas notícias veiculadas à população, por estes meios de comunicação. Por isso, é comum nas primeiras discussões em sala de aula, que os alunos retratem os integrantes do movimento social, como vagabundos e arruaceiros, ao promoverem 'invasões' de terras e interdições em rodovias. Quando questionados sobre a fonte de informação que utilizaram para a construção de sua opinião, geralmente, citam telejornais e revistas de grande circulação, que abordam o tema de maneira, totalmente parcial, a partir do interesse das elites."

" No entanto, os integrantes do movimentos sem-terra ao promoverem ocupações, são duramente reprimidos e não raramente, assassinados por jagunços a mando de latifundiários, com aval do sistema judiciário, que em, praticamente, todas as oportunidades absolve os culpados."

" É por isso, que os movimentos sociais têm importância, ao objetivarem a ruptura da estrutura vigente, pois a Reforma Agrária é a esperança para a melhoria na qualidade de vida de toda a população, por aumentar a produção de alimentos e geração de empregos no campo."

" Mas, quando tratada a questão da Reforma Agrária no Brasil, o que permanece é a ideologia fatalista, apregoada pela elite agrária, que objetiva sua manutenção no poder e procura, por meios midiáticos, denegrir e deturpar a imagem dos movimentos sociais do campo, enquanto os mesmos, tentam elaborar um projeto mais igualitário para o país, através da Reforma Agrária."

Fosse um curso de formação de novas lideranças do MST, o conteúdo estaria perfeito, o problema é querer que isso seja o conteúdo do Ensino Médio de todos os alunos. É preciso ter uma visão muito autoritária para tratar como verdade absoluta ou conhecimento a visão de mundo de um único grupo da sociedade. Mas o documento vai além e tem uma passagem com a demonstração prática do desprezo absoluto por fatos, conhecimento e método científico. O que vale é a ideologia.

Utilizam seus discursos para deslegitimar os movimentos sociais, inclusive com o apoio de chamados intelectuais, como Navarro (2013) e Graziano (2015), que afirmam que a Reforma Agrária no Brasil não é mais necessária, devido ao processo de tecnificação na agricultura e o aumento da produtividade nas lavouras do agronegócio. Com relação a este assunto, Paulo Freire afirma:

No caso da reforma agrária entre nós, a disciplina de que se precisa, segundo os donos do mundo, é a que amacie a custo de qualquer meio, os turbulentos e arruaceiros, “sem terra”. A reforma agrária tampouco vira fatalidade. Sua necessidade é uma invencionice absurda de falsos brasileiros, proclamam os cobiçosos senhores das terras (FREIRE, 1999, p. 63).

Nem vou entrar no mérito de tratar Paulo Freire como se fosse a Bíblia, coisa que até o próprio condenaria, e optar deliberadamente por subestimar quem discorda dele, os "chamados intelectuais". Fico apenas nas datas, por acreditar que a matemática salvará o Brasil. Se alguém diz, em 2013 e 2015, que a Reforma Agrária "não é mais necessária", como um texto de 1999 pode contrapor essa afirmação? Paulo Freire era vidente?

Goste você ou não de Paulo Freire, odeie ou ame, pouco importa, o argumento é inválido porque falta lógica. Um texto escrito em 1999 não tem como servir de contraponto a dois textos falando de avanços tecnológicos e aumento de produtividade em 2013 e 2015 porque falta o acesso às informações sobre a evolução desse período. Aqui não se trata de um debate sobre princípios, sobre o que é imutável no tempo, mas de uma análise totalmente dependente de fatores só verificáveis nos anos de 2013 e 2015.

Como um trabalho que possui um erro grotesco desses pode ser publicado por universidades respeitadas e servir de modelo para dar aulas no Ensino Médio? Arrisco dizer que esse pedaço seria criticado até mesmo num eventual curso preparatório da Escolinha do MST, já que tal argumento seria ridicularizado e trucidado num debate público.

O problema não está na ideologia, mas no paternalismo de desculpar erros, excessos e até delírios nos trabalhos que preguem a ideologia dominante nos cursos de humanas nas universidades. Avalie se o trabalho usasse um conservador da década de 70 dizer que Paulo Freire estava errado ao pedir Reforma Agrária em 1999. Será que teria sido também publicado em diversas revistas acadêmicas de universidades importantes? Ou teriam percebido o erro e pedido revisão?

Recentemente, o Portal A Coluna, do Pólo Comunista Luiz Carlos Prestes, conseguiu reunir professores de importantes universidades públicas do Brasil para um curso online gratuito sobre Geografia e Luta de Classes. Tema: "por uma geografia antimonopolista, antilatifundiária e anti-imperialista". Há alunos desses mesmos professores que não estão tendo aulas durante a pandemia pela resistência às plataformas online. Mas, no portal, as aulas são gratuitas.

CONFIRA A PROGRAMAÇÃO:

Aula 1: 29/08 (14H) – Introdução: marxismo e geografia (Larissa Alves de Lira, UFMG)
Aula 2: 05/09 (14H) – A espacialidade da dialética: elementos de uma geografia crítica na obra de Gramsci (Marcos Aurélio da Silva, UFSC)
Aula 3: 12/09 (14H) – Trabalho e relação sociedade-natureza (Lucineia Scremin, UFG)
Aula 4: 25/09 (horário a confirmar) – A urbanização capitalista desigual e a importância do marxismo para o estudo do urbano (Ana Fani Carlos, USP)
Aula 5: 03/10 (14H) – O mito globalization e a atualidade do imperialismo (Geraldo Pereira Barbosa, Escola Nacional Florestan Fernandes)

Não resta a menor dúvida sobre a orientação ideológica dos professores e do curso. No caso, considero que está perfeito: é realmente o mínimo que eu esperava de um curso feito sob medida para um portal dedicado ao comunismo. Os professores estão dentro do seu direito de ter sua visão de mundo e militar politicamente dando esse curso numa instituição de ativismo político. O que a sociedade espera é outra coisa, que o comportamento na Universidade e nas escolas seja diferente.

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