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Para fugir de “censura” das Big Techs, influenciadores de direita utilizam cada vez mais o Telegram
| Foto: Divulgação Telegram

Acabei de ler a decisão sobre o banimento do Telegram. Estava quase dando um duplo twist carpado de tanto rir quando lembrei que eu também pago para o pessoal escrever aquilo. Um humorista profissional teria feito melhor e muito mais barato. Fora isso, eu trabalhei no STF dois anos, tenho orgulho disso. Senti como uma sabotagem pessoal.

Explico. Justo hoje de manhã eu estava me achando por causa dessa experiência no mundo jurídico. Tive a honra de fazer uma live sobre a necessidade de uma nova Constituição, pelo aniversário do professor Modesto Carvalhosa. Participou o ministro aposentado do STF, Francisco Rezek. Mandou recado e ligou depois o ministro aposentado Eros Grau, meu preferido. Conversei com o professor Ives Gandra Martins, a professora Beyla Fellous e o professor Luciano Castro, em Iowa. Recebemos o professor Ignacio Berdugo da Universidade de Salamanca.

Eu não tinha nem roupa para o evento, estava nas nuvens. Agora me vem essa decisão de "bloquear" o Telegram e eu não posso mais contar vantagem porque trabalhei no STF. Engraçadinhos do mundo digital já me mandaram piadas. Aliás, fizeram questão de mandar pelo Telegram. Como é que eu vou perdoar uma coisa dessas?

Umas semanas atrás, fiz um longo artigo explicando todos os detalhes das experiências de países que proibiram o Telegram. Nele eu discuto a questão de estar ou não sujeito às leis brasileiras, responder ou não às nossas autoridades e mostro também como a Alemanha fez com que o Telegram efetivamente se submetesse às leis do país. Neste artigo não vou falar de contradições como o Telegram ser a principal fonte de notícias dos bombardeios na Ucrânia. Falo apenas das 18 páginas da decisão em si e suas consequências.

O que o ministro Alexandre de Moraes determinou

Para o Telegram, há apenas duas determinações. A primeira é que a Polícia Federal encaminhe à sede da empresa no exterior uma ordem para que apresente, em 72 horas, o responsável legal pelas operações no Brasil, já que não existe uma representação oficial. A segunda é suspender a conta de Allan dos Santos e fornecer dados pedidos sobre contas relacionadas a ela.

O bloqueio em si é uma determinação que não é dada ao Telegram, mas a outras empresas, todas elas com sede e representante legal no Brasil.

a) Determinação aos representantes das empresas APPLE e GOOGLE no Brasil que insiram obstáculos tecnológicos capazes de inviabilizar a utilização do aplicativo TELEGRAM pelos usuários do sistema IOS (APPLE) e ANDROID (GOOGLE); b) Determinação aos representantes das empresas APPLE e GOOGLE no Brasil para que procedam à retirada do aplicativo TELEGRAM das lojas APPLE STORE e GOOGLE PLAY STORE;

A Apple e a Google terão de fazer duas coisas exclusivamente no Brasil: tirar o app do Telegram das lojas de aplicativos e impedir que o aplicativo rode nos sistemas IOS e Android no Brasil.

Digamos que exista um outro aplicativo, pertencente a outra empresa, que permita ao Telegram rodar dentro do sistema dele. Ele também teria de ser retirado das lojas de aplicativos e impedido de rodar nos dois sistemas operacionais para celulares? Pode parecer lógico que sim, mas a decisão não aborda isso. Há um outro ponto mais à frente sobre driblar a proibição.

c) Determinação às empresas que administram serviços de acesso a backbones no Brasil, que neles insiram obstáculos tecnológicos capazes de inviabilizar a utilização do aplicativo TELEGRAM;

Backbone é a espinha dorsal da internet. São, simplificando muitíssimo, as estruturas de cabos e fibra óptica que conectam provedores de internet a servidores. Elas têm dimensão continental geralmente e conectam inclusive um país a outro. Conectam o provedor de internet, esse que a gente contrata e paga, aos servidores que eles usam para funcionar.

Na guerra da Ucrânia, por exemplo, empresas de backbone têm interrompido seus serviços na Rússia. Isso é um ataque direto à infraestrutura de Putin, já que os provedores locais ficam sem ter como providenciar conexões. Uma coisa é a empresa de backbone desativar toda a rede, outra é identificar e interceptar dados.

O Telegram funciona com dados criptografados. Como isso funciona? (Peço perdão antecipadamente a quem é da área pela simplificação excessiva. Mais importante do que explicar o conceito neste artigo, é fazer o cidadão comum entender quem faz qual parte da operação).

Você manda uma mensagem do Telegram do seu celular. No seu celular você vê que é do Telegram e vê a mensagem. Mas esses dados não saem daí livremente, são embaralhados numa chave de criptografia. Eles viram um tipo de código que vai para o seu provedor, entra na rede administrada pela empresa de backbone e vai até o outro celular. É como um pacote embrulhado sem etiqueta.

Quando chegar no outro celular que também tem o Telegram instalado, ele tem a chave que abre o pacote. E a outra ponta vê, em vez de dados embaralhados e indecifráveis, a mensagem que você mandou.

Claro que tem como burlar isso. O caso mais conhecido é do programa PRISMA, que identificou as mensagens passadas por Edward Snowden no escândalo do Wikileaks enquanto trafegavam nas redes de backbone. Não é preciso entender de informática para avaliar a complexidade de uma operação do tipo.

d) Determinação às empresas provedoras de serviço de internet que insiram obstáculos tecnológicos capazes de inviabilizar a utilização do aplicativo TELEGRAM;
e) Determinação às empresas que administram serviço móvel pessoal e serviço telefônico fixo comutado, para que neles insiram obstáculos tecnológicos capazes de inviabilizar a utilização do aplicativo TELEGRAM.

Os provedores de internet, essas empresas que você paga para ter internet no celular e em casa, ficam obrigados a inviabilizar a utilização do Telegram. Novamente, a mesma dúvida: e se houver outro serviço que possibilite o funcionamento do Telegram dentro dele? Os provedores de serviço fixo e móvel também seriam obrigados a bloquear?

Uma dedução lógica diria que sim, mas isso não está na decisão. Há uma razão. Existem inúmeros serviços que, em tese, permitem que o Telegram rode dentro deles. Ocorre que não são utilizados primariamente para esta finalidade. São serviços ligados à segurança de sistema de empresas ou navegação protegida.

Numa comparação exagerada, seria como determinar que fossem banidos todos os serviços que possibilitam que criminosos recebam transferência de dinheiro, por exemplo. Em tese, qualquer banco possibilita, ninguém pede ficha criminal para abrir conta. Seria uma regra surreal, com mais prejuízos do que benefícios à sociedade.

Diante do exposto, DETERMINO A SUSPENSÃO COMPLETA E INTEGRAL DO FUNCIONAMENTO DO TELEGRAM NO BRASIL, devendo ser intimado, pessoal e imediatamente, o Presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), WILSON DINIZ WELLISCH, para que adote IMEDIATAMENTE todas as providências necessárias para a efetivação da medida, comunicando-se essa CORTE, no máximo em 24 (vinte e quatro) horas.
A suspensão completa e integral do funcionamento do TELEGRAM no Brasil permanecerá até o efetivo cumprimento das decisões judiciais anteriormente emanadas, inclusive com o pagamento das multas diárias fixadas e com a indicação, em juízo, da representação oficial no Brasil (pessoa física ou jurídica).

O presidente da Anatel é citado nominalmente. A agência reguladora e ele pessoalmente têm agora a obrigação de tomar todas as providências para impedir o funcionamento do Telegram no Brasil num prazo de 24 horas.

No lugar do sr. Wilson, eu começaria a correr para verificar pessoalmente o celular e o computador de todas as pessoas no território nacional. Só para garantir mesmo. Criada em 1997, a Anatel não conseguiu efetivar até hoje medidas como prover o tanto de internet que foi vendido, cobrar só o que a gente usa e atender a gente no SAC. Mas vai conseguir impedir o Telegram de funcionar. Oremos.

A parte mais controvertida da decisão

Eu tenho um grupo de Telegram para enviar notícias sobre Cidadania Digital, neuropsicologia comportamental, Big Techs, poderes digitais, regulamentações internacionais. Faço parte de vários outros muito mais interessantes, como os de promoções dos produtos que eu amo, dicas financeiras, meditação, jardinagem, futuro do trabalho, marketing político, psicologia social, análise política, marketing digital, inovações digitais, inteligência artificial, dicas de educação, dicas digitais para crianças, análise de figurinos de famosas, dicas de maquiagem, jardinagem e outras elevações intelectuais da alta cultura.

Muitos desses canais são negócios. Indivíduos e empresas se comunicam com seu público consumidor e até efetivam vendas por meio do Telegram. Quem depende disso para botar comida na mesa numa época de R$ 21 o quilo da vagem já se apavorou. Todo mundo começou a dizer que vai colocar VPN e TOR. São jeitos de navegar como se não fosse do Brasil e acessar o Telegram do mesmo jeito. Mas tem outro ponto da decisão:

As pessoas naturais e jurídicas que incorrerem em condutas no sentido de utilização de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo TELEGRAM estarão sujeitas às sanções civis e criminais, na forma da lei, além de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais).

VPN é a sigla para Virtual Private Network. Se você tem uma dessas, a identificação do seu computador é protegida nos serviços públicos. Novamente numa simplificação grosseira, é como se você pudesse passar despercebido no tráfego de dados. Parece coisa de criminoso, mas não é.

Hoje, há um mercado imenso de VPN no Brasil e no mundo, dedicado a proteger bancos de dados de ataques digitais. Com a pandemia e a digitalização forçada do mundo do trabalho, 60% das empresas brasileiras adotaram o sistema de VPN para os seus dados. Estariam todas impedidas de funcionar? Numa visão rigorosa, sim.

Ao ler a decisão, a gente entende que só serão punidos pessoas e empresas que utilizarem VPN e sistemas assemelhados para burlar a proibição e acessar o Telegram. Mas como é possível determinar se fizeram isso? Não é. Os dados são protegidos, não existe acesso a eles para saber se houve ou não tentativa de acesso ao Telegram.

Também são bem populares, principalmente entre pessoas do meio digital, o acesso via TOR. É um projeto de software de código aberto, desenvolvido inicialmente pelo Laboratório de Pesquisas Navais dos Estados Unidos. TOR quer dizer "The Onion Router" e garante navegação completamente anônima, ou seja, também usar o Telegram no Brasil.

Ser código aberto significa que qualquer pessoa que sabe programar pode ser uma parte do projeto. A rede TOR funciona por meio dos chamados relays, utilizadores voluntários que disponibilizam suas conexões para que outros usuários naveguem anonimamente.

Não há, no entanto, uma conexão direta entre quem quer navegar de forma anônima e o relay. Cada conexão exige no mínimo 3 relays:
1. O de entrada, que dá acesso à rede TOR
2. O intermediário, que conecta o relay de entrada ao de saída
3. O de saída, que manda a requisição original do usuário de origem ao destino

Atualmente, há pelo menos 6 mil relays pelo mundo. São pessoas e empresas que voluntariamente disponibilizam suas conexões para que outras pessoas, desconhecidos ao redor do planeta, possam navegar de maneira anônima. Todos eles e todos os usuários que se conectam a eles em tese usam subterfúgios para burlar o bloqueio do Telegram. Boa sorte ao pobre funcionário público encarregado de cobrar multa de todo esse pessoal.

Há dois caminhos a seguir. O primeiro é entender que apenas no caso de comprovação de que o indivíduo ou a empresa que usam VPN, TOR e assemelhados tentaram burlar a proibição do Telegram no Brasil. Parece o mais razoável. E até seria, se não fosse impossível.

É possível saber quais indivíduos e empresas no Brasil usam serviços de VPN e TOR. Não é possível, no entanto, saber o que eles fazem exatamente depois que entram nessas redes, fica tudo anônimo.

Surge aí um impasse. Suponhamos que você utiliza um serviço de VPN ou TOR. Ele decididamente te dá a possibilidade de burlar a proibição do Telegram no Brasil. No entanto, não tem como checar se você usou ou não esse serviço para tentar acessar o Telegram.

Dada a impossibilidade de trilhar o primeiro caminho, surge um segundo. Todas as empresas e indivíduos que usam os sistemas de VPN e TOR estão sujeitos à multa de R$ 100 mil porque usam subterfúgios tecnológicos que burlam a proibição do Telegram no Brasil.

TOR não é negócio, é um projeto de voluntários em torno do planeta. Mas VPN e sistemas assemelhados são negócios sólidos e legalizados, inclusive no Brasil. Para você ter uma ideia, após a pandemia, 60% de todas as empresas brasileiras usam VPN. Todas as grandes empresas usam, a maioria das startups e boa parte das médias e pequenas empresas. Todos esses sistemas de TI estarão proibidos sob multa de R$ 100 mil? Muito complicado de imaginar na realidade.

Que tal uma aula de informática para o pessoal do STF?

Compreendo perfeitamente o argumento de que empresas devem obedecer as leis brasileiras e respeitar as instituições brasileiras para operar no Brasil. Concordo de forma absoluta com essa teoria. Somos um país soberano, uma democracia e a ninguém é dado desobedecer a lei, ainda mais sistematicamente, como o Telegram.

Dar murro na mesa vai fazer com que o Telegram respeite as leis e instituições brasileiras? Infelizmente não. Evidentemente o ministro Alexandre de Moraes sabe disso. Tomou a medida extrema apostando que a reação da empresa seja finalmente tomar conhecimento de que o Brasil tem leis e instituições. Terá sucesso? Só o tempo dirá.

Ocorre que a conta da aposta não será paga pelo ministro nem pelo STF, será paga pelo cidadão comum. O Telegram não é o principal aplicativo de mensagens do Brasil nem tem no Brasil uma operação que abale significativamente suas operações mundiais. Muitos cidadãos brasileiros, no entanto, dependem do Telegram para colocar o pão na mesa.

Após o início da pandemia, muitas pessoas e empresas ficaram completamente dependentes de plataformas de Big Techs para sobreviver. Esse é um dos principais desafios da regulamentação em todos os países. Não há dúvidas de que Big Techs têm de obedecer leis. A dúvida é sobre fazer cidadãos que obedecem leis e pagam impostos também financiarem o movimento de pressão dos seus governos sobre as Big Techs.

Escrever este artigo lembra incrivelmente um despacho que eu escrevi, como comissionada do STF, no ano de 2008. Precisávamos, para uma transmissão específica, de uma LP, linha telefônica dedicada, algo que hoje faz parte da museologia das comunicações.

As empresas de telecomunicações, as mesmas dos telefones e celulares, é que disponibilizavam as LPs. Havia um outro contrato para que técnicos de imagem e som utilizassem as LPs para transmitir o evento que captariam. Ele foi vetado sumariamente. A alegação era de que, uma vez contratada a LP, não havia necessidade de técnicos.

Fiz um despacho que, à época, foi apelidado de forma jocosa: "The Despacho". Com texto e desenhos eu explicava numa infinidade de páginas que a tal da LP, linha dedicada, era um fio que a companhia telefônica deixava exposto no meio da rua ou na parede de um prédio. Utilizar esse fio exposto para fazer uma transmissão demandava um trabalho extra, o de conectar os fios ao equipamento. Cada LP custava R$ 45.

Estamos diante da mesma situação. É compreensível a teoria que move o STF, a do respeito à soberania das leis brasileiras. As medidas tomadas, no entanto, são desconectadas da realidade dos fatos. A decisão que proíbe o Telegram não gera os efeitos que pretende porque peca em questões técnicas. Não sei o que geraria os efeitos desejados, mas creio que uma escolinha de informática melhoraria muito a qualidade das decisões.

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