Uma no cravo e outra na ferradura: Big Techs dizem banir conteúdo antivacina mas fazem dinheiro com ele.| Foto: BigStock
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Hoje aconteceu uma pequena pausa nos linchamentos virtuais sucessivos de mulheres por causas nobres. O YouTube entregou uma documentação secreta à CPI do Covid, dados de vídeos negacionistas de vacina ou falando de tratamento precoce apagados da plataforma por quem os postou. Ficará tudo em segredo.

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Eu fiquei muito emocionada porque, até outro dia, o YouTube dizia em processo judicial não ter acesso a dados nem de criminoso. Vejam como a tecnologia evoluiu rápido e agora aparentemente todos os problemas da humanidade serão resolvidos. Sobre os vídeos apagados porque cogitavam origem laboratorial do vírus e depois desapagados porque realmente existe essa hipótese ninguém falou nada.

Sem querer jogar água no chopp de quem comemora essa bondade das Big Techs, lembro que acaba de sair outra notícia. Um relatório produzido pelo CCDH - Center for Countering Digital Hate - concluiu que as redes sociais lucram US$ 1,1 bilhão por ano com a veiculação de conteúdo antivacina. Explico como a conta é feita.

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Os truques de redes sociais e mistificadores funcionam bem até que as pessoas saibam como eles são feitos. É como um número de mágica antes e depois do Mister M. O coração do espetáculo está em manter a ilusão de que todo mundo é livre para postar e ver o que quiser. Nem uma coisa nem outra acontecem.

Muito se fala em "censura" das redes sociais e há um debate quente sobre postagens indevidamente proibidas e derrubadas. O foco exclusivo nesse debate acaba nos enganando sobre outro, o de ser livre para ver o que quiser. Como a briga fica em poder postar ou não, já assumimos que postar resolve o problema, só que não.

Ninguém vê o que quer em redes sociais, nós vemos o que as plataformas decidem que a gente veja ou não. Muita gente pensa que segue pessoas e tudo o que esses perfis postam vai aparecendo conforme for postado. Não é assim. Quando você posta algo, a rede social faz aparecer na timeline de uma pequena porcentagem dos seus seguidores e, a depender da reação, essa postagem vai aparecer para mais ou menos pessoas.

Qual é a regra que define se uma postagem vai ser mostrada a todos os seguidores de um perfil e aos amigos deles também ou apenas a 1% dos seguidores do perfil? Os critérios estabelecidos pelo algoritmo da rede social. Quais são esses critérios? Não divulgam por segredo empresarial. Curiosamente, 70% das visualizações de vídeos antivacina no YouTube brasileiro ocorreram por sugestão da própria plataforma aos usuários.

Voltemos agora ao relatório do CCDH. Eles fizeram um levantamento de todo o conteúdo antivacina disponível nas redes sociais nos Estados Unidos. Concluíram que 70% do conteúdo compartilhado é feito por apenas 12 influencers. Ou seja, o algoritmo das plataformas foi programado de forma a decidir que a distribuição do conteúdo desses 12 influencers antivacina deve ser viral e exponencial.

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Foi feita então uma análise da representatividade econômica desses 12 canais específicos, qual a estrutura das produções, a relação das plataformas com esses criadores e também a relação com outros negócios fundados em teorias conspiratórias ou anticiência. Há um ecossistema que lucra muito com a disseminação de desinformação às custas da saúde mental e da harmonia entre as pessoas.

Os 12 canais antivacinas dos Estados Unidos são dos donos de 22 organizações dedicadas à temática do canal, que empregam 266 pessoas e faturam US$ 36 milhões por ano. As estrelas dos canais também acabam participando de conselhos de empresas ou institutos, com salários anuais na casa dos seis dígitos.

O governo dos Estados Unidos abriu um programa especial chamado PPP, Paycheck Protection Program, com empréstimos em condições especialíssimas para as empresas não quebrarem durante a pandemia e garantirem a folha de pagamento. Essas empresas antivacina receberam US$ 1, 5 milhão do programa do governo.

Se você chegou até aqui, já deve estar morrendo de raiva desse pessoal que montou um império ganhando dinheiro com truque e se aproveitando dos outros. Ocorre que eles são os peixinhos, não os tubarões. As redes sociais ganham infinitamente mais que os influencers antivacina com o conteúdo deles. Ano passado eles faturaram US$ 36 milhões e geraram para as Big Techs US$ 1,1 bilhão.

O CCDH cobra que as redes sociais cumpram a promessa de não lucrar com desinformação sobre a pandemia. Mas o conteúdo desses 12 canais continua sendo distribuído de forma potencial e organizada entre eles. Aumentam cada vez mais o alcance recomendando conteúdo do outro ou formando brigas eletrizantes, com direito a debates online e formação de torcida.

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Não é como uma televisão que tem audiência porque as pessoas gostam mesmo de sangue jorrando e vão atrás do programa. As Big Techs é que decidem mostrar e sugerir esses conteúdos a um número tão grande de pessoas. Há 62 milhões de inscritos nesses canais nos Estados Unidos hoje. É com base nessa audiência que se fez a conta do bilhão.

Há informações públicas das plataformas sobre quanto dinheiro fazer por usuário e por impressão, que é o engajamento, cada ação como clicar, ver, dar like, dar deslike, comentar e compartilhar. As informações mais seguras são essas últimas, daí se sabe exatamente quanto se lucrou com os anúncios e cliques nesses vídeos especificamente. Foi feita uma ponderação com número de usuário só nas localidades onde o dado não estava disponível.

Seguindo esse raciocínio, chegamos a um ponto muito interessante da discussão. Quando alguém da dislike ou vai xingar uma postagem antivacina, pode até ter algum efeito negativo sobre o produtor de conteúdo, mas dá dinheiro para a rede social. Ou seja, sob o ponto de vista econômico, um conteúdo muito xingado ou que cause profunda revolta é excelente para as Big Techs. E isso só acontece por causa do algoritmo, que é feito pelas empresas, seguindo critério delas. Vamos aos números:

"O público antivaxxer de 37,8 milhões de seguidores no Facebook e Instagram pode gerar ao Facebook até US$ 1,1 bilhão em receita. Este número é baseado no rastreamento de 419 contas antivacinas ativas do Facebook e Instagram, bem como a própria chave do Facebook métrica da receita média por pessoa (ARPP), que ficou em um valor de $ 29,23 no ano até o primeiro trimestre de 2021, de acordo com o último relatório anual da empresa. O principal valor dos antivaxxers para o Facebook está em envolver os usuários que são subsequentemente anúncios veiculados. Na ausência de dados publicamente disponíveis sobre o número preciso de cliques em anúncios que os antivaxxers geram, esta figura ARPP dá a melhor estimativa possível do valor de seu público para o Facebook em sua família de produtos."

"Os vídeos antivaxxers do YouTube podem gerar até US$ 707.222 em receita anual de anúncios, de acordo com o número de visualizações recebidas pelos canais antivacinas monetizados do YouTube nos últimos 30 dias e informações disponíveis sobre as taxas típicas pagas pelo YouTube de anunciantes por mil visualizações. Isso inclui apenas os 15 antivacinas do YouTube, canais que identificamos como portadores de publicidade no YouTube, embora os outros 80 também contribuem para a receita do YouTube, gerando tráfego. O YouTube divide essa receita de anúncios, dando aos criadores de conteúdo 55 por cento de participação, mantendo os 45 por cento restantes. Este modelo significa que antivaxxers podem ganhar até $ 388.972 por ano com anúncios em vídeos do YouTube, enquanto o YouTube ganha $ 318.250".

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"A audiência do Twitter dos antivaxxers de 2,7 milhões de seguidores pode ganhar até US$ 7,6 milhões em receita anual ao Twitter. Este número é baseado na própria métrica principal do Twitter de “Usuários ativos diários monetizáveis” (mDAUs) que recebem anúncios na plataforma. O Twitter tinha 192 milhões de mDAUs em 2020, em comparação com 1,3 bilhão de contas relatadas em total. Usando esses números, é possível estimar que 392.575 seguidores de contas que promoveram a desinformação da vacina são mDAUs que geram receita para a plataforma, contribuindo com US$ 7,6 milhões para as receitas de US $ 3,7 bilhões do Twitter em 2020. Tal como acontece com o Facebook, o principal valor dos antivaxxers para o Twitter é envolver os usuários e posteriormente veicular, tornando esta a melhor estimativa possível da audiência do antivaxxer do Twitter na ausência de dados sobre as impressões de anúncios geradas pelos antivaxxers."

Daí chegamos ao dilema de banir ou não das plataformas determinados perfis e quem decide isso. Aí é que vem a reviravolta. Há o temor de que perfis ilegais migrem para plataformas obscuras ou ilegais e cheguem às pessoas do mesmo jeito. A hipótese é que as pessoas vão procurar isso, só que não. Sem a ajuda do algoritmo das redes sociais, o sucesso não é o mesmo, mostra o estudo.

Vários desses canais tiveram problemas com vídeos antivacina banidos, suspensão ou redução de alcance ao longo de 2020. Muitos deles entraram na Justiça contra as redes sociais, inúmeros criaram contas reserva e virou moda a migração para canais do Telegram. Essa migração tem a vantagem de já formar o grupo interessado no tema, entregar todo o conteúdo produzido e a empresa ser russa com sede nos Emirados Árabes, ou seja, não derruba nada.

Segundo o relatório do CCDH, as alternativas fazem os produtores de conteúdo perderem dinheiro, alcance e capacidade de levantar fundos com seus usuários. As Big Techs, que dão uma no cravo e outra na ferradura, continuam tendo lucros astronômicos e ainda não há uma solução para regulamentação em nenhum lugar do mundo.

"Os governos precisam criar novos órgãos para analisar como os atores de má-fé usam a Internet, os danos que causam e convocar órgãos não governamentais que possam responder com eficácia. O trabalho da CCDH em antivaxxers, por exemplo, forçou mudanças nas até então relutantes plataformas de mídia social e levou a antivaxxers a ter de remover sua propaganda para evitar banimento. O fracasso da mídia social em agir na pandemia custou-nos vidas, o governo deixar de agir no rastro da pandemia pode nos custar nossa sociedade", conclui o relatório.

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Muitos governos trabalham duro numa tentativa de regulamentação do poder das Big Techs, que passa primeiro pela compreensão deste fenômeno. Essas mudanças passam a ocorrer quando as pessoas, principalmente os adultos, começam a ter alfabetização midiática e entender como as redes sociais funcionam. Eu não tenho a menor dúvida de que a vivência digital é um caminho sem volta e pode trazer abundância à humanidade e muito mais possibilidades individuais e coletivas.

O que nos falta é parar de cair na tentação do combo de bate-boca, respostas fáceis e formação de panelinhas das redes sociais. É algo que tira a atenção das questões importantes e também leva muita gente a subestimar o poder das Big Techs e o número incrível de possibilidades que elas podem trazer para a gente. Isso acontece quando nós nos educarmos para usar redes sociais em vez de ser usados por elas.