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Como o conteúdo que mais viraliza é determinante para o sucesso, extremistas e justiceiros ganharam espaço social com a dinâmica das redes.| Foto: Maicon J. Gomes/Gazeta do Povo

É a primeira vez que um estudo com método científico prova que as Big Techs promovem incentivos perversos para criar uma sociedade cada vez mais polarizada. A pesquisa foi conduzida por três dos principais nomes mundiais em psicologia neural, Jay Van Bavel, Steve Rathje e Sander Van Der Linden, num projeto conjunto das universidades de Cambridge e Nova Iorque.

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Nós percebemos que o uso das redes sociais e a polarização insuportável coincidem cronologicamente, testemunhamos mudança de comportamento de pessoas próximas mas não compreendemos exatamente como isso acontece. A explicação trazida agora pelos neurocientistas pode nos ajudar a encontrar um caminho para o uso mais saudável da tecnologia.

Hoje, 4 bilhões de pessoas usam redes sociais no mundo. A maioria das pessoas hoje consome informações via redes sociais, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente. Há uma fusão entre o mercado da informação e o da socialização. Mesmo quando consumimos notícias produzidas por veículos de comunicação, na maioria das vezes elas chegam até nós pelas redes sociais, ou seja, mediadas pelos algoritmos das Big Techs.

Se você é de direita, talvez tenha certeza de que as Big Techs privilegiam o discurso progressista. Se você for de esquerda, talvez tenha certeza de que as Big Techs dão espaço demais à extrema-direita. Ambos estão certos. O conteúdo que você mais vai ver nas redes é o que fala contra o seu grupo. Embates entre grupos viralizam e isso está moldando nossa sociedade.

O estudo fez uma análise da possibilidade de viralização de postagens conservadoras e progressistas de acordo com vários fatores diferentes. Foram utilizadas as redes sociais Facebook e Twitter. Há dois pontos em comum entre as postagens que tendem a "viralizar", ou seja, tendem a ser mais distribuídas ativamente pela plataforma do que as demais: são emocionais e falam do grupo oposto.

Seres humanos são atraídos por conteúdos do tipo com ou sem ajuda de redes sociais. Desgraça e vida alheia sempre foram o prato mais fácil para obter audiência. Mas nós percebemos que houve um acirramento no mundo todo nos últimos anos e é por isso que os cientistas buscam explicações concretas. Entender o que ocorre é fundamental para reverter este fenômeno.

Em 2018, uma equipe interna do Facebook fez o alerta de que o algoritmo poderia estar incentivando a tendência humana natural para o divisionismo. A pesquisa divulgada agora pelas universidades de Cambridge e de Nova Iorque coloca isso em números. Um post atacando o grupo oposto tem 67% mais chances de viralizar do que qualquer outro tipo de conteúdo.

Pode parecer uma bobagem, mas é um mecanismo com potencial de transformar a forma como a sociedade se organiza. Não é à toa que Big Techs empregam tantos especialistas em comportamento, neurologia e psicologia. Os sites e aplicativos são desenvolvidos para que nosso cérebro emita descargas de dopamina, hormônio associado a prazer, com likes e engajamento. Vivenciamos emoções reais, fortes e viciantes nas plataformas.

O que acontece quando essa emoção tem uma probabilidade muito maior de ocorrer quando atacamos o grupo oposto? Isso vira o comportamento mais comum que você vai ver, com consequências muito danosas para toda a organização da sociedade e das instituições. Saímos do modelo de agrupamentos em torno daquilo que acreditamos para o oposto, com efeitos significativos no que os indivíduos consideram ser sua identidade social.

A polarização que vivemos, segundo o estudo, não é ideológica, é afetiva. Isso ocorre quando a rejeição ao grupo oposto é maior que a afeição pelo grupo em que estamos. A identidade social passa a ser algo meio distorcido. Não nos identificamos por pertencer a um grupo, mas sobretudo por rejeitar um grupo e tudo o que ele pense ou represente. Isso é fomentado pelas redes sociais.

O estudo faz uma observação sobre perfis nos Estados Unidos que cabe para nós também, aqui no Brasil. A identidade social tem se tornado tão ligada às questões debatidas no Facebook e no Twitter que muitas das pessoas passam a se identificar assim.

São inúmeros os que colocam no perfil a orientação política, como se isso fosse o mais importante definidor de sua personalidade ou caráter. Essas pessoas realmente acreditam nisso e se comportam assim. A radicalização das redes faz com que isso chegue ao ponto de pessoas passarem a definir a própria personalidade como anti-algo no perfil. "Fulano de tal, antifascista" ou antirracista ou anti-esquerda.

Colocar-se contra o grupo oposto deixa de ser um momento do debate político para passar a definir a identidade social de muitas pessoas e isso é grave. Mais grave ainda é que se torna a base do modelo de negócio das plataformas que usamos para nos informar e nos relacionar com políticos. Além disso, torna-se ingrediente decisivo para a viralização, que determina o sucesso de movimentos, marcas, campanhas e políticos.

Redes Sociais operam a economia da atenção, o sucesso e o dinheiro vão para aquilo que recebe mais atenção, boa ou ruim. As pessoas ainda não têm educação suficiente para entender como essa dinâmica funciona, acabam sendo usadas pelas redes em vez de usar o algoritmo. A maioria dos adultos crê que basta não usar redes sociais para se blindar da influência delas ou que pela internet, via Big Techs, existe liberdade de expressão. Ainda temos um longo caminho adiante.

Em diversas pesquisas, as pessoas dizem que não aguentam mais polarização e político que só se ocupa de atacar adversário em vez de fazer proposta. Eu já ouvi isso de muita gente e talvez você tenha este sentimento. Ocorre que o estudo mostra que as postagens que têm mais engajamento são aquelas batendo no lado oposto.

O Facebook chegou a fazer um estudo interno em que os usuários podiam marcar alguns posts com a classificação "Bad for the World" (Mau para o mundo). Eles acabaram não instalando a ferramenta. As postagens que mais têm engajamento eram justamente as que os usuários diziam ser ruins para o mundo. Eles experimentaram diminuir a distribuição desse tipo de conteúdo, mas baixou tanto o engajamento na plataforma que deixaram essa história para lá.

A sociedade criada pelas Big Techs consiste em grupos sociais que só fazem sentido quando guerreiam entre si. Imaginam ser completamente diferentes e até mesmo opostos, mas agem da mesma maneira. De um lado, há os que vivem para atacar os outros dizendo se defender de uma sociedade insana. Para contê-los, virão os justiceiros, que também ultrapassarão todos os limites. Ambos viralizam.

O estudo ressalta que não é possível, pelo menos no momento, estipular quanto do engajamento obtido com ataques a grupos opostos vem do algoritmo e quanto é resultado do comportamento humano natural. Isso ocorre porque as Big Techs não revelam quase nenhum dado sobre seus algoritmos e seu modelo de negócio. A novidade do estudo é mostrar que o ataque ao grupo oposto viraliza e o algoritmo poderia conter isso, mas seria um baque financeiro para as redes sociais.

Pensando bem, seria um baque para todo mundo. Já há carreiras políticas, movimentos e até militância publicitária que têm como base apontar o dedo para o outro. Tornam-se virais e, na economia da atenção, acabam tendo sucesso no mundo real. A maioria não recebe esses benefícios econômicos e financeiros, mas tem o benefício emocional de estabelecer uma identidade social sem precisar enfrentar seus próprios demônios internos, basta apontar os do grupo oposto.

A polarização em si não é o problema. A questão é ela não ser centrada em acreditar num ideário, projeto ou grupo, mas em rejeitar tanto o outro grupo que se aceita tudo do próprio. Dessa forma, cada indivíduo é diariamente incentivado a pisotear os próprios princípios em nome do que seria um "bem maior". Dia após dia, pessoas e grupos mergulham num chiqueiro moral que passa a ser o caldo da sociedade. É preciso reverter esse processo.

Enxergamos com muita clareza quando um grupo social existe só para pisotear o nosso. Mas será que enxergamos quando estamos em um grupo assim, que não constrói nada, sem propósito, cujo ideal é impedir que lhe tirem algo? É preciso pensar com cuidado porque somos levado pelas emoções nas redes. Medo e ódio nos paralisam ou nos movem, mas nunca foram bons conselheiros.

Esse novo estudo de Cambridge e da NYU mostra algo que tem se tornado um pensamento cada vez mais comum entre psicólogos e neurocientistas sobre tecnologia: quanto mais avançamos, mais precisamos entender de gente. A tecnologia aumenta todos os potenciais humanos, tanto o intelectual quanto o emocional, para o bem e para o mal. Dizem que a bênção dos algoritmos é que eles nos dão o que pedimos. A maldição deles também é essa.

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