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Brasil está no topo do ranking mundial de polarização política tóxica
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Polarização política é um problema? Depende do tipo de polarização. Infelizmente, o Brasil é campeoníssimo naquela mais tóxica, a que conduz a uma divisão interna da sociedade e facilita o autoritarismo. O ranking é feito há 12 anos pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, na Suécia. É muito interessante porque divide democracias e autocracias em vários níveis, com muitos detalhes objetivos.

Segundo o Democracy Report 2022, este é o ano em que oficialmente o mundo perdeu todos os avanços democráticos das últimas 3 décadas. Voltamos aos níveis de 1989, com 70% da população vivendo sob ditaduras. Um ponto importante também é acompanhado, o esgarçamento do tecido social por meio da polarização política tóxica. É um conceito que vale a pena aprender porque não tem relação com diferença política em si, mas com a forma de tratar compatriotas.

O relatório é sobre o estado da democracia em si, mas chamo a atenção para a questão da polarização política tóxica porque é o ponto em que nós, cidadãos, temos participação direta. É fundamental compreender esse conceito e saber diferenciar com clareza a polarização natural da tóxica. Segundo o estudo, as novas tecnologias promoveram uma nova dinâmica social que muda a cara das autocracias.

"Este Democracy Report documenta vários sinais de que a autocratização está mudando de natureza. Com cinco golpes militares e um autogolpe, 2021 apresentou um aumento de golpes sem precedentes nas últimas duas décadas. Esses golpes contribuíram para impulsionar o aumento do número de autocracias fechadas. Eles também parecem sinalizar uma mudança dos atores encorajados, dado o declínio anterior nos golpes durante o século 21. A polarização e a desinformação de governo também estão aumentando. Essas tendências estão interligadas. Públicos polarizados são mais propensos a demonizar oponentes políticos e desconfiar de informações de diversas fontes, o resultado é uma mudança na mobilização social. O aumento da desinformação e da polarização sinaliza que pode haver uma mudança na natureza da autocratização no mundo. Discutimos essa mudança em detalhe na terceira parte do relatório: “Autocratização Mudando a Natureza?”, diz o relatório (grifo meu).

O gráfico a seguir mostra a evolução do nível de polarização tóxica em cada país do mundo. Os países em cinza estão nos mesmos níveis de 2011 a 2021. Quando mais escuro o azul, mais o país conseguiu enfrentar a polarização tóxica. Quanto mais forte o vermelho, mais crescimento de polarização tóxica. Olhe o Brasil.

Muitas análises focam em personagens. A culpa é do Bolsonaro, do Trump, do Olavo de Carvalho, do Steve Bannon ou do assistente dele que sempre me ajuda a vender cursos de Cidadania Digital, Jason Miller, dono e fundador do Gettr. É inegável que lideranças políticas e econômicas têm um papel de responsabilidade no cenário internacional. Ocorre que ele pode ser bem mais complexo do que alcançam nossos olhos e nossa cultura política.

Por isso o relatório da Universidade de Gothemburgo é sempre tão interessante. Ele analisa com cuidado casos de todo o mundo, trazendo os dados. O fenômeno do aumento de polarização tóxica combinada com piora na qualidade da democracia é mundial, atravessa culturas e continentes (são os da parte de cima do gráfico). Mesmo nesse ambiente há países que melhoraram a democracia e tomaram as rédeas da polarização (são os que estão abaixo da diagonal no gráfico).

Todos nós temos visto muita gente falando do avanço de regimes ditatoriais no mundo e da necessidade de proteger os valores democráticos e liberdades individuais. Por que cada vez mais gente fala disso e as ditaduras avançam do mesmo jeito? Porque boas intenções não defendem a democracia, projetos baseados em fatos e ciência sim. Por enquanto, ainda não acabamos a olimpíada mundial de bom mocismo em redes sociais. Talvez só depois olhemos para a democracia.

"Essa onda crescente de autocratização em todo o mundo destaca a necessidade de novas iniciativas para defender a democracia. Em 2021, surgiram várias iniciativas dessas, tanto na cúpula do poder quanto por uma infinidade de iniciativas importantes enraizadas na sociedade civil em todo o mundo. Mas o engajamento para proteger e promover a democracia deve ser construído sobre ciência para que seja eficaz. Os fatos devem ir ao encontro de equívocos e mentiras sobre as virtudes e limitações da governança de regimes democráticos e autocráticos", alerta do Democracy Report 2022. (grifo meu)

Se você quer saber mais dessas iniciativas que dão certo para defender democracia e liberdades individuais, sugiro que veja os textos e vídeos do "Case for Democracy". É uma iniciativa muito interessante que elenca estudos científicos sobre iniciativas reais de defesa da democracia. A intenção é que este repositório de material sirva para formuladores de políticas públicas, ativistas e representantes da sociedade civil nos diversos países do mundo.

Volto meu foco à parte da polarização porque é onde cada um de nós realmente pode fazer algo. O Brasil está entre os 5 países do mundo onde mais aumentou a polarização tóxica nos últimos 10 anos. Ela coincide com a piora nos diversos dados objetivos de preservação da democracia e respeito às liberdades individuais.

No gráfico abaixo, você vê 4 linhas diferentes. Repare que, em todos eles, a linha pontilhada laranja cai quando sobem as linhas em preto e azul. É praticamente simultâneo. A análise é dos últimos 20 anos. A linha pontilhada laranja é a democracia liberal. A linha pontilhada azul é o discurso inflamado por parte de partidos políticos. É interessante olhar as linhas completas, que dividem polarizações. A preta é a polarização política e a azul é a polarização da sociedade. Repare que há uma retroalimentação entre essas duas polarizações.

Então vamos ao ponto crucial: o que seria objetivamente a tal da polarização tóxica? É a que ultrapassa defesa de ideias para demonizar um grupo e enxergar da pior forma possível tudo o que ele fizer. Também vai sempre relativizar os excessos dentro do próprio grupo. Nesse raciocínio, regras democráticas podem ser pisoteadas. As liberdades individuais e dignidade humana também. Basta ter uma justificativa moral para que alguém seja o alvo.

Se você é de direita, vai pensar na hora no identitarismo e na patrulha da esquerda. Se você for de esquerda, vai pensar na hora na fase mais agressiva do bolsonarismo, antes das várias baixas. Minha bisavó definia meu posicionamento político como "baguncista". Como eu sou da bagunça, tudo o que é patrulha me odeia. Por isso tenho o privilégio de verificar atitudes iguais em quem diz ser o oposto do outro.

Existe um conceito em psicologia que separa polarização racional de polarização emocional e pode nos ajudar muito aqui. A polarização racional é quando você se junta a um grupo por acreditar que ele é bom e defende ideias com as quais você concorda. A polarização emocional é quando você se junta a um grupo por julgar que ele seja o mais apto a combater o grupo do qual você discorda ou pelo qual se sente ameaçado.

"A polarização tóxica e a autocratização tendem a se reforçar mutuamente. Níveis extremos de polarização têm efeitos prejudiciais sobre os fundamentos democráticos da sociedade. Quando a polarização torna-se tóxica, campos diferentes normalmente começam a questionar a legitimidade moral de outros grupos, vendo a oposição como ameaça existencial a um modo de vida ou a uma nação.

Pesquisas demonstram que cidadãos em contextos altamente polarizados
muitas vezes estão dispostos a abandonar os princípios democráticos se isso significar que o próprio povo do seu campo seja eleito e que as decisões “certas” sejam tomadas
. Assim, níveis tóxicos de polarização contribuem para vitórias eleitorais de líderes antipluralistas e ao empoderamento de suas agendas.

Quando os líderes antipluralistas assumem o cargo, seus partidos provavelmente
usarão retórica que se destina a insultar, ofender ou intimidar membros de grupos específicos
– geralmente minorias ou grupos políticos", diz o relatório (grifos meus).

Todos nós já incorremos neste erro, eu inclusive. Confundimos princípios e justiça com lei do retorno e sede de vingança. Nada disso é proibido, tudo faz parte da alma humana. O pulo do gato é aprender a analisar quando estamos sendo movidos pelos nossos princípios e quando vamos justificar qualquer atitude desde que nosso adversário se dê mal.

Há muito tempo aprendi que não somos o que pregamos nem o que fazemos, somos aquilo que toleramos. Em 2019, escrevi um texto mostrando um conservador inglês preocupado com a degeneração da militância. Caminhamos necessariamente para o arbítrio quando toleramos que o grupo do qual fazemos parte se degenere. Pior ainda quando justificamos a degeneração de princípios com o combate ao mal ou defesa de um bem maior.

Gostamos de culpar os políticos, mas o esgarçamento do tecido social só acontece com a participação ativa da sociedade. Muitos de nós têm participado da insanidade que virou o "nós contra eles", abdicando do princípio da boa fé e enxergando nas entrelinhas intenções malignas ocultas em quem pensa diferente. Como encontramos o caminho de volta? Não tenho uma receita pronta, só algo que funcionou para mim, a fé.

Eu acredito na misericórdia e na redenção do ser humano. Também acredito que somos todos falhos e igualmente dignos da Graça. Não tem nada de científico nisso, eu sei. Mas foi por aí que consegui edificar amizades com gente que já me atacou enquanto vivia essa hipnose da polarização tóxica. Tenho bons amigos que vão de alunos de Olavo de Carvalho a militantes do PSTU. Não me importa o que eles defendem politicamente, mas que sejam amigos verdadeiros.

O tecido social não é feito de concordâncias e pensamentos similares, é feito de humanidade. Tem muita gente de quem a gente discorda mas respeita. Gente que admiramos e amamos defende o oposto do que nós na área do pensamento, da teoria política. A união de quem pensa diferente se dá pelos pontos em comum, como valorização do caráter humano e da coerência. Só há democracia quando respeitamos a dignidade humana de forma inegociável.

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