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Burocratas: como negar auxílio do INSS à mulher com braços e pernas amputados
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O que justifica uma mulher que perdeu as mãos e as pernas estar há mais de um ano tentando receber o benefício do INSS? Nada. Há os que, do alto de seus empregos estáveis e com a fé pública garantida pelo Estado, utilizam linguagem cartorária para tentar justificar situações desumanas. Por que essas pessoas são as selecionadas justamente para cuidar dos destinos de quem mais precisa de apoio?

Em 2018, Cleomar Marques trabalhava em uma usina de Porto Velho, capital de Rondônia. Teve dores de estômago, os médicos pensaram que era gastrite, piorou, precisou de internação, foi operada e, quando acordou, não tinha mais as mãos nem as pernas. As amputações foram necessárias devido a uma necrose após a cirurgia.

Ela perdeu o emprego. A filha, que mora com ela, teve de parar de trabalhar para cuidar da mãe. Resolveram, em dezembro de 2018, entrar no INSS com um pedido de BPC, Benefício de Prestação Continuada. Há várias situações que dão direito ao auxílio, sempre levando em conta que a renda per capita familiar seja menor que 1/4 do salário mínimo. No caso, Cleomar ficou deficiente física sem condição para trabalhar e a família não tem renda porque ninguém trabalha.

O relato do primeiro atentimento no INSS é uma cena de terror: " "Uma servidora puxou os papéis e perguntou: 'Quem vai assinar? Você assina?'. Eu disse que não podia assinar, mas, sim, a minha filha ou minha mãe. A mulher, então, olhou e disse: 'Então, não vale'. Daí, ela pegou, rasurou o papel e jogou fora" - disse Cleomar ao Jornal de Rondônia.

Em nota, o INSS negou que isso tenha ocorrido. A primeira justificativa é que "Não há registro de reclamação do atendimento mencionado em 2018", um clássico da linguagem cartorária. Uma reclamação pode ter sido feita sem que o fato tenha ocorrido e o fato pode ser ocorrido mas não haver sido formalizada reclamação. Parece um detalhe de linguagem, mas é revelador da alma do burocrata brasileiro, que aflora em todo seu esplendor nesse caso.

Conto um caso ocorrido prosaico ocorrido comigo para que você se lembre dos seus ou do que ouviu de familiares, amigos e conhecidos que usaram serviço público. Precisei ir ao Banco do Brasil resolver uma questão do meu salário maternidade e levei meu filho, na época com 2 meses. O segurança não deixou o carrinho entrar. Pedi para falar com o gerente. Ele demorou mais de 20 minutos, chegou até a porta e começou a gritar comigo dizendo que era para eu deixar o carrinho na rua se quisesse resolver minha pendência. Pedi ajuda a dois policiais militares que passaram na rua. A eles, o gerente disse na minha frente que apenas me havia pedido uns minutos para pegar a chave da porta por onde era possível passar com o carrinho.

Obviamente aqui falo de um caso quase anedótico, bem diferente do sofrimento profundo a que é submetida a mulher amputada que aguarda o benefício do INSS. Você deve saber de um monte de experiências semelhantes à minha: caso banal em que o cidadão poderia ser bem atendido mas é humilhado pelo servidor público, não registrado formalmente e em que o servidor mente sobre os fatos, desrespeitando o poderoso instrumento da fé pública. É de uma cultura permissiva com esse comportamento que saem notas oficiais assim:

"Sobre a reportagem a respeito do atendimento da senhora Cleomar Marques Filgueira, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) esclarece que nenhum benefício foi negado em razão da falta de assinatura em requerimento. Os dois pedidos de benefício foram indeferidos por critérios legais: no caso do auxílio-doença, em razão da falta de carência para solicitar o benefício; no caso do BPC, por critério de renda. Não há registro de reclamação do atendimento mencionado em 2018. Os dois pedidos de benefício analisados em 2019 foram protocolados em meio digital, com registros de assinatura por curador. O INSS possui Instrução Normativa (77/2015), que estabelece a assinatura a rogo em caso de impossibilidade:§ 1º Ao requerente analfabeto ou impossibilitado de assinar será permitida respectivamente: II - a assinatura a rogo na presença de duas pessoas, preferencialmente servidores, as quais deverão assinar com um terceiro que assinará em nome do interessado.O INSS vai instaurar procedimento administrativo para apurar os fatos."

Com a linguagem cartorária se alivia o impacto da perversidade do texto, que usa tecnicalidades para inferir que a cidadã está mentindo sem oferecer nenhuma contestação objetiva ao relato dela.

Qual é o relato? Ela foi a uma agência, não conseguiu assinar e a servidora pública que a atendia jogou a papelada fora. A contestação do INSS inicia falando que "nenhum benefício foi negado em razão da falta de assinatura", o que seria o contraponto ao relato de Cleomar. Não é contraponto porque seria absolutamente impossível negar um benefício que não foi pedido formalmente. Quando uma instituição escolhe essa via de discurso para prestar contas à sociedade, incentiva o comportamento cínico entre os servidores. Note bem: não estou falando que é mentira, que é ilegal, que é incorreto, longe disso. É uma opção responder dessa forma.

Na primeira vez em que assumi um cargo público, uma servidora concursada, com mais de 20 anos de experiência, me aconselhou logo após a posse para ter muita paciência. Disse que o pessoal só trabalha metade do tempo: a outra metade do expediente é dedicada a explicar por que não têm obrigação de fazer o que foi solicitado. Achei exagerado e amargo. Mordi a língua menos de uma semana depois.

Se o cidadão pode fazer tudo o que a lei não proíbe, o servidor público pode fazer apenas o que a lei manda. É dessa lógica que surgem, diariamente, debates intermináveis sobre pequenas ações do dia-a-dia.

Desse raciocínio surgem situações prosaicas como envolver a polícia num caso sobre um carrinho de bebê. Mas podem surgir também tragédias humanas, como deixar em total desamparo uma mulher que teve os braços e as pernas amputados. A burocracia é necessária para organização e transparência, não pode ser um fim em si mesma nem pode ser utilizada como justificativa para negligência e geração de sofrimento desnecessário.

É pelas mãos de quem usa a burocracia como escudo e não como instrumento para servir à cidadania que uma mulher amputada e sua filha estão vivendo de doações há mais de um ano. Quantos outros dramas serão necessários para uma mudança de consciência?

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