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“Cidadão não, engenheiro civil” – sairemos melhores da pandemia?
| Foto: BigStock

Há situações que despertam o melhor de nós e outras que despertam o pior. Impossível não prender a respiração diante da cena quase surreal no Fantástico do final de semana em que um casal resolve protestar contra o fiscal da vigilância sanitária do Rio de Janeiro que apontava irregularidades em um bar. Não eram donos nem funcionários, se diziam clientes. Celular na mão, câmera ligada, tinham toda a razão do mundo, pouco importavam os fatos.

A frase "cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você", usada com petulância espontânea pela mulher contra o fiscal foi utilizada nas redes sociais para sinalizar o casal como impuro. Na verdade, a frase é um suco de Brasil.

Obviamente a vida do casal já foi vasculhada e exposta nas redes por gente que pretende, acima de tudo, afirmar aos amigos que não é assim como eles. A mulher já perdeu o emprego, punição que é mais do que suficiente para o comportamento, além do mais no momento em que estamos. Mas é fato que eles não executariam e gravariam a performance com tanta certeza de estar arrasando se fosse a primeira vez ou se ela tivesse chocado alguém em vezes anteriores. Chocou porque foi na televisão.

Poucas coisas dão mais sensação de poder do que projetar nossa voz e nossa imagem. Antes que tivéssemos as redes sociais e tanta tecnologia ao alcance de todos para filmar, gravar e difundir, somente alguns tinham essa experiência. Eu tive desde os 17 anos de idade e a diferença é que vivia num mundo em que tinha base de comparação para manter meus pés no chão. Vaidade é bicho que come o dono e tem de ser vigiado 24 horas por dia, com firmeza e disciplina. Se a maioria se deixa inebriar, quem será o parâmetro? Ali havia a vaidade de gravar o enfrentamento contra aquilo que me incomoda: tudo. Não há o que não nos incomode nesses tempos.

Há um outro ponto que desnuda a alma brasileira e é muito profundo na frase que foi dita pela mulher. Ser cidadão não é nada, vale menos que um título qualquer. Desde a colônia somos doidos por títulos, verdadeiros ou falsos, comprados ou forjados. Quando seremos cidadãos?

O conceito de que um ser humano é melhor que outro por ter um título já é problemático em si. Há ainda uma outra dimensão: o total desprezo pela história pessoal da outra pessoa. Suponhamos que realmente fosse possível e moral comparar se uma pessoa é melhor que a outra pelos títulos. De onde foi tirada a base de comparação? O que sabia o casal sobre a história, a formação e o conhecimento daquela pessoa que julgavam ser menos que eles? Nada. Veja nas redes sociais diariamente a regra de julgar menor e menos humano o que não é espelho.

Segundo aquele velho clichê, há três coisas que não voltam atrás: a palavra dada, a flecha lançada e a oportunidade perdida. É óbvio que o casal revoltado com o fiscal é adulto, maior de idade e totalmente responsável por aquilo que fez. Isso não se discute. Meu ponto é outro: todos os que estão chocados com esse comportamento fazem parte de uma sociedade que permite isso desde que não sofra o escrutínio da imprensa sem adjetivos e com serenidade, como foi o caso.

Quantas vezes você viu, no seu círculo social ou profissional, alguém se julgar melhor ou mais preparado que outra pessoa por pura empáfia, sem nem ter o trabalho de saber da vida do outro? É disso que se trata: se não for num bar, gritando contra um fiscal e no Fantástico, aceitamos esse comportamento para não criar caso.

Toda vez que vejo uma situação dessas, fico pensando se aquele é o melhor ou o pior lado da pessoa se mostrando. Tudo ali é absolutamente inusitado, começando pela ideia de ir num bar à noite sem máscara de proteção sabendo dos dados diários da pandemia no Rio de Janeiro. Eu entendo o dono do bar querer abrir, o garçom querer trabalhar, mas custo a entender os clientes. Diante da fiscalização, um casal que poderia simplesmente mudar de bar resolve bater boca com um fiscal diante de uma câmera de televisão. Qual a chance de isso dar certo? Fariam isso em outro momento? Quantas pessoas andam com os nervos à flor da pele.

Há um lado da pandemia que estamos minimizando, o impacto na saúde mental das pessoas. Os estudos de eventos anteriores já demonstram efeitos tanto do isolamento quanto do medo, mas não havia um fator: a politização da pandemia e os debates acalorados entre políticos e na televisão na hora em que mais se precisa de união.

Ocorreu não apenas no Brasil. Vários países do mundo, nessa onda que vem dos debates-show de TV a cabo nos Estados Unidos, acabaram com uma programação de mídia eletrônica que mimetiza jornalismo mas é entretenimento, costumo chamar de shownalismo. Coloca-se duas ou mais pessoas para "debater" um tema qualquer, de forma acalorada, sem a menor possibilidade que nenhuma das duas mude de ideia e sem equilíbrio no preparo intelectual e experiência para tratar do tema. É energético, é divertido mas, se fosse jornalismo, seria como colocar alguém para dizer que está chovendo contra outro dizendo que não está e jamais abrir a janela para ver se chove.

Também na imprensa, devido a inúmeras mudanças nos últimos 20 anos, ganhou bastante força um jornalismo que gera muitos cliques e é bastante próximo do show: jornalismo declaratório. Alguém diz uma coisa, tuíta alguma coisa, grava um vídeo e tem tempero de polêmica? Pronto, assume o lugar de fato ou de opinião. É uma declaração apenas. Seria opinião se a pessoa tivesse preparo técnico e experiência para analisar um fato que conhece integralmente. Seria fato se fosse verificável e não o pensamento de alguém.

Combater uma pandemia depende de lideranças firmes e serenas com capacidade de passar segurança e informações com credibilidade para a população. Infelizmente, não é o que tem feito sucesso nesse momento histórico específico. Confundimos com liderança quem é capaz de falar mais alto ou atrair mais atenção e isso vale para política, comunicação e até para o meio artístico. Se o que faz sucesso é polêmica, temos uma sociedade que gosta de viver de sobressaltos.

A revista Lancet reuniu em um lugar só 24 estudos psicológicos feitos com pessoas que passaram por epidemias anteriores, como SARS e MERS. Ali foram avaliados efeitos de todo o tipo, em diversos grupos, quem ficou doente e não, quem teve de ficar quarentenado e não. Eles concluem que efeitos psicológicos e psiquiátricos da quarentena são tão severos que obrigam uma avaliação mais profunda de risco. Teremos danos e teremos mortes e, a partir de um determinado período de isolamento, há que se pesar se é a doença ou se são as doenças mentais que causam mais danos.

Em todos os estudos citados houve união das autoridades e informação clara à população sobre o que fazer. Mesmo sem passar pelo momento de valorização dos bate-bocas sem sentido e da politização até de remédio, epidemias que demandaram quarentena tiveram efeitos de saúde mental não só na população civil, também em quem trabalha no sistema de saúde e até nos políticos, devido às decisões humanas dramáticas que precisam tomar.

Os líderes que nós escolhemos, na política, na sociedade, na economia e na cultura, nos trouxeram até aqui. Não sabemos se serão capazes de nos levar a um ponto em que tenhamos uma sociedade melhor que antes da pandemia. Precisamos nos conscientizar de que o foco na saúde mental é tão urgente quanto o combate ao vírus e fundamental para vencer essa batalha e, quem sabe, essa mania de escolher líderes para um Brasil-colônia.

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