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Cracolândia, em São Paulo | NELSON ALMEIDA/AFP
O embate das redes não é pela cracolândia, aliás ignora as pessoas que estão ali e suas famílias, é por superioridade moral.| Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo

De quando em quando, a cracolândia volta ao noticiário e às redes sociais invariavelmente num debate quente, de posições muito marcadas, em torno de acontecimentos trágicos. Rigorosamente todas as vezes haverá uso político e oportunista do debate. Neste final de semana, mais uma vez, as pessoas que estão na cracolândia foram usadas para a rinha entre os fandoms contra e a favor de Janaína Paschoal.

Você pode querer acreditar que se trata de uma indignação natural diante de um fato: a PM impediu um padre de alimentar moradores de rua na cracolândia e isso é desumano. Trata-se de uma justificativa moral excelente para pessoas que se unem em comportamento de manada. Já havia um balão de ensaio sobre o tema, que está na pauta política paulistana, há uma semana. A entrada de Janaína Paschoal na história foi o que faltava para a viralização

Há 6 dias, dia 3 de agosto, eu alertei nas redes que a volta da polarização em torno do tema começava a ser gestada, com a distorção sobre uma manifestação na cracolândia. Na verdade, as primeiras publicações são de pessoas que realmente estiveram lá e têm opiniões muito fortes a respeito. Ocorre que isso foi comprado como fato, avaliação objetiva da realidade, por diversos influenciadores. Isso sedimenta o terreno para uma sensação de que todos estão familiarizados com o tema.

Jornalistas estão nas redes sociais e muitos entraram nessa onda de comentar uma manifestação da qual nada sabiam, ouviram o galo cantar sem saber onde. A cobertura sobre o ocorrido com o padre Julio Lancelotti foi feita da mesma maneira, repassando o peixe do jeito que se pegou, sem nenhuma checagem ou contextualização. A familiaridade com o tema o torna natural, como se as pessoas intuíssem o que ocorreu.

Tenho um carinho enorme pelo padre Julio Lancelotti, que me acolheu num momento de extrema dificuldade, sustentou minha fé, me ensinou uma lição inesquecível sobre perdão e batizou meu filho. Nunca vi na paróquia São Miguel Arcanjo as pessoas que protagonizaram um animado debate sobre cracolândia este final de semana. Talvez seja erro de endereço, pensam que a paróquia fica lá. Aliás, devem pensar que a paróquia endossaria discussões do nível que fizeram sobre um tema que sequer conhecem.

Outro lugar em que nunca tive a grande sorte de encontrar com os virtuosos defensores digitais da cracolândia foi na cracolândia mesmo. Eu já tentei participar de trabalhos assistenciais lá, geralmente capitaneados pela PIB, Primeira Igreja Batista, que fica ali. Também as paróquias do centro de São Paulo, IBAB, Igreja Adventista e tantas outrs participam. Não tenho estrutura psicológica para lidar com a situação. Agradeço a Deus por cada um dos que têm.

Algo muito curioso nos debates sobre a cracolândia é que não se ouve quem está lá nem suas famílias. Por quê? Porque o debate não é sobre isso, quem o encampa considera-se superior a essas pessoas e, portanto, com legitimidade para falar em nome delas e decidir por elas sem consultá-las. Sei que é confortável imaginar-se acima da cracolândia, mas nenhum de nós está. Ir parar ali ou ver alguém amado trilhar este caminho depende de circunstâncias que não controlamos.

Embora estejam em condições indignas, as pessoas que vivem ali têm dignidade, inerente à condição humana. Mas isso escapa à análise dos que se imaginam monopolistas da virtude numa jihad contra os higienistas paulistanos. A cobertura desleixada da imprensa ajuda a criar um caldo imaginário onde as pessoas vêem-se movidas emocionalmente a adotar uma posição. Imaginam saber do que se trata.

Li todas as reportagens feitas sobre a ação da Polícia Militar, que teria impedido distribuição de comida. Ocorre que a distribuição de comida foi feita, não exatamente nos lugares em que se pretendia anteriormente e não apenas pelo padre Julio Lancelotti. Pelo relato dele, há um esquema de segurança no centro de São Paulo que passou a fechar determinadas vias, complicando ações de caridade.

É a primeira vez em que se impede que a distribuição de comida na cracolândia seja feita como e onde os voluntários querem? Ou não, isso tem ocorrido com frequência? O que mudou ali nos últimos tempos em função da pandemia? As igrejas e ONGs que atuam cotidianamente na cracolândia também relatam mudanças ou ações impedidas? O que a prefeitura tem feito lá? Como tem sido a atuação da polícia militar? Qual a opinião de pessoas especializadas em lidar com esse tipo de situação? Nada disso está nas reportagens, o que é uma loucura.

Ao ler reportagens afirmando que o padre Julio foi impedido de distribuir comida, as pessoas imaginam ter recebido informação jornalística. Em primeiro lugar, foi impedido mesmo e pela PM, sem sombra de dúvida. Depois, isso virou notícia porque é absolutamente inédito, não se fazia, trata-se de uma política nova e cruel. Também o que foi feito é errado, já que publicado em tom de denúncia. O fato é que não se sabe nada disso porque não consta das matérias. E o padre distribuiu a comida no final das contas.

Exatamente 20 anos atrás, em agosto de 1991, foi publicado um estudo relatando o mesmo fenômeno midiático. O nome sintetiza a ideia: "The more you watch, the less you know" (Quanto mais você assiste, menos você sabe). O estudo foi conduzido por meio de 250 entrevistas por telefone feitas pelos pesquisadores Justin Lewis, Sut Jhally and Michael Morgan do Centro de Estudos da Comunicação da Universidade de Massachusetts-Amherst. Era sobre a guerra no Golfo.

Ainda não havia redes sociais, então não tinha como empurrar a culpa. Assim como acontece agora, quanto mais embrenhada a pessoa estava no assunto, menos ela sabia dos fatos principais dele. Exemplifico pela guerra do Golfo: 55% dos entrevistados sabiam que os EUA apoiaram o Iraque na Guerra Irã-Iraque. Entre quem via mais de 3 horas de notícia por dia, só 47% sabiam. Entre quem via menos de uma, 67% sabiam. As redes sociais só potencializam o efeito.

No caso da cracolândia, as pessoas consomem o que julgam ser informação mas não traz os dados importantes. Os mais envolvidos são os que se comovem, não os que sabem do tema e querem mostrar que se comovem. Isso rapidamente vira uma identidade social nas redes, é preciso escolher fazer parte do grupo virtuoso. A maneira mais efetiva é atacando quem seja do grupo oposto.

Chama-se polarização emocional o fenômeno em que a aderência ao grupo não é bem pelo que ele representa, mas por aquilo a que ele diz se opor. As manifestações mais aguerridas não tem nada a ver com a cracolândia nem com as pessoas que estão ali, mas com a necessidade de mostrar virtude atacando alguém. A pessoa passa a ser vista como alguém que se importa com excluídos da sociedade se atacar alguém tido como o oposto disso. É só postar e pronto.

Se você ama alguém que foi parar na cracolândia, tem um familiar lá ou já teve a infelicidade de cair nessa, certamente pensa diferente dos mais ruidosos nas redes sociais. Para você interessa resolver, não demonstrar virtude publicamente. Quem lida com a realidade sabe que a cracolândia não é liberdade, é prisão e desespero. Também sabe que não adianta internar à força, tirar dali, tratar ou botar na cadeia. É algo complexo, doloroso e que escancara a fragilidade do equilíbrio humano. Dá muito medo aprofundar-se no tema, melhor gritar.

Três pessoas que eu amo muito fizeram suas passagens pela cracolândia e assemelhados. Uma saiu, mas perdeu completamente a memória, a alma, a identidade, virou outra pessoa. Outra sai e volta em um círculo vicioso que tento mas não consigo entender. A terceira conseguiu sair, recuperar a vida normal, ser produtiva novamente. Nenhuma dos três veio da miséria, são todos formados e bem sucedidos, com famílias sólidas e unidas que os amam. Como entender?

Entender eu não entendo, confesso. Apenas sei que existe e envolve sofrimentos terríveis explorados pelos mercadores da desgraça. Este mês, foi presa num condomínio de luxo da grande São Paulo a traficante conhecida como "Gatinha da Cracolândia". Lorraine Bauer tem 19 anos, é de uma família estável e bancava pequenos luxos com a venda de crack. O irmão afirmou à imprensa que ela pagará por seus crimes e a família não vai passar a mão na cabeça. Abaixo, o vídeo que ele fez de dia dos pais, onde aparece a irmã desde pequena.

Assim que a traficante foi presa, surgiram diversos perfis falsos dela no Instagram e no Facebook. Todos ganharam milhares de seguidores. A ideia de uma traficante nascida e criada por uma família estável num condomínio de luxo já causa interesse. Coloque-se no meio a exploração da cracolândia, é o enredo perfeito. Misturar a riqueza e a tradição com a degradação completa é uma novela da vida real. Ah, também rende muito. Estima-se que a cracolândia movimento R$ 10 milhões por mês em drogas.

Também é uma novela deliciosa imaginar-se uma pessoa virtuosa e que defende os pobres porque fez um post xingando Janaína Paschoal no caso cracolândia. Não precisa saber nada de cracolândia nem o que ela falou. É o enredo, o mesmo que atraiu tantos seguidores para a conta da traficante. Agora surge uma oportunidade de participar sendo mocinho da história e sem ter de considerar os viciados como iguais, irresistível. Melhor de tudo, sem se comprometer com solução nenhuma. Responsabilidade zero.

Bom, mas se não adianta prender, não adianta internar, não adianta tirar de lá, não adianta tratar à força, o que fazer com a cracolândia? Não há uma resposta pronta. O que une as pessoas naquele lugar é a possibilidade de compartilhar um ritual de uso do crack, a mesma coisa que fazem usuários de maconha com efeitos menos radicais e viciantes. A questão é por que vão parar ali e como fazer com que retomem suas vidas.

Já imaginei que a pobreza levasse as pessoas a isso, o abandono, a falta de amor, de sonhos e oportunidades. Há de tudo isso e também há casos em que não há nada disso. Tem gente que quis aproveitar o melhor da vida, ter experiências excitantes e acabou experimentando crack e indo parar lá. E há os filhos do crack, uma chaga da nossa sociedade, que ainda não conseguimos resolver.

Meu amigo Marcio Américo, comediante, roteirista e escritor premiado, morou na cracolândia. Em um vídeo de 15 minutos, ele conta o que viveu e viu e também comenta as posições mais comuns nas redes sociais. A opinião dele é que não existe nas redes uma defesa das pessoas na cracolândia, há uma tentativa de virar porta-voz de zumbis, ignorando o drama humano dessas pessoas e das famílias. Ele defende que só informação nos trará melhores soluções:

O embate emocionante e violento entre o padre Julio Lancelotti e a deputada Janaína Paschoal não existe na vida real, só no fandom. Busque as declarações dos dois e não verá ataques nem virulência de parte a parte. Aliás, os dois concordam que as soluções utilizadas até agora para a cracolândia não funcionam. Divergem sobre o que fazer e como enquanto buscamos uma solução possível, adequada, humana e digna. Repare como um se refere ao outro com respeito, a briga não é deles.

A maioria das postagens virtuosas sobre a cracolândia parte do imaginário de que as pessoas ali são moradores de rua, pobres e não têm como comer, precisam do padre. Não sei se é preconceito pensar que só pobre fica se drogando na rua ou que os pobres tenham mais tendência. Talvez seja uma tentativa de imaginar-se livre disso, que nenhum de nós está. Só não é fato. A maioria ali tem casa e família.

Não é uma opinião minha. O Marcio Americo fala no vídeo da experiência que teve quando ele próprio, que sempre teve casa e família, se meteu a ficar lá. A maioria tinha quem estivesse disposto a acolher de volta, só não queria sair da cracolândia. Uma pesquisa da UNIFESP acompanhou a frequência da cracolândia durante 3 anos e concluiu que a maioria tem casa e família.

Segundo a professora Clarice Madruga, que conduziu o estudo, "um dos fatos mais interessantes que a pesquisa mostrou é que a maioria dos usuários vieram de suas próprias casas, de suas famílias. Eles tinham um passado onde já trabalharam e já estudaram. Então, é uma proporção pequena de pessoas que já eram vulneráveis antes do contexto da dependência química. Isto quebra um pouco muitos preconceitos que temos de achar que é tudo uma questão social e que, se oferecermos este amparo social unicamente, tudo será resolvido. É claro que não!".

Na era da apoteose da superficialidade, resta saber se algum dia São Paulo terá um prefeito com coragem para enfrentar o desafio da cracolândia. Se ele for levar a sério, desagradará profundamente os formadores de opinião mais barulhentos e que nunca nem pisaram na cracolândia. As soluções pelo mundo envolvem suporte de saúde, social, psicológico, assistência às famílias, revitalização urbana, investigação dos traficantes. Infelizmente, nada disso faz muito sucesso nas redes sociais.

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