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Criado-mudo racista: etimologia freestyle já está nos livros escolares
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Quanto tempo demora para que uma mentira inventada pelo identitarismo (não confundir com questões justas de minorias) chegar até os livros escolares? Três anos. Eu tenho especial carinho pela fake news do criado-mudo racista porque é a mais bem documentada. Ela surge em uma entrevista no UOL Universa, que não corrigiu até hoje e depois entra como "pauta social" de uma marca, a Etna. A partir deste ano, faz parte do currículo escolar oficial da rede pública estadual de São Paulo.

Este material, a versão preliminar do Livro do Professor de História 2022 da Rede Estadual de São Paulo ensina como uma verdade história a Fake News do criado-mudo racista. Confira nas páginas 47 e 48. É possível corrigir? Claro. Mas o material também pretende ensinar os estudantes paulistas como buscar fontes históricas confiáveis. As fontes do próprio manual são Fake News do identitarismo. Talvez no currículo novo tenham trocado as aulas de História por Revisionismo Histórico.

A mentira e a infâmia funcionam como um travesseiro de penas que você rasga no topo de um prédio. Você realmente pode fazer todo o esforço para recolher cada uma das penas, será quase impossível conseguir. É por isso que o jornalismo profissional deveria trabalhar para reduzir ao máximo o número de mentiras ou até imprecisões declaradas por fontes.

Com o aprimoramento das redes sociais, o cuidado deveria ser redobrado devido à velocidade de propagação das informações. No livro Psychology of Fake News, reunião de estudos da editora Routledge (ele custa R$ 1000 mas está de graça no Kindle brasileiro), há um estudo específico sobre erros de publicações científicas. Mesmo quando corrigidos, os erros continuam sendo mais utilizados que a versão real como referência de outros trabalhos científicos e da imprensa.

O identitarismo não é a luta por pautas identitárias, como direitos civis, inclusão, igualdade. Falamos aqui do famoso "flanelinha de minoria", geralmente da elite metropolitana. A pessoa escolhe uma minoria para tomar conta, não está nem aí se a minoria quer ou não e começa a falar em nome dela. Uma das principais atividades é policiar vocabulário e inventar que determinados termos são racistas, machistas, homofóbicos ou transfóbicos. É assim que conseguem poder, pressionando nas redes por demissões e cancelamento de empresas.

A jóia da coroa da Etimologia Freestyle, expressão criada pelo meu amigo Raphael Tsavkko Garcia, doutor em Direitos Humanos, é o criado-mudo. Aliás, foi ele quem rastreou até a origem essa lenda urbana que será ensinada como verdade histórica aos estudantes da rede pública do Estado de São Paulo. Na era da hipercomunicação demora menos de 3 anos para que uma mentira contada numa entrevista e espalhada pelo mercado publicitário seja oficializada como revisionismo histórico.

Diz o Livro do Professor da matéria História 2022: "Esta atividade propõe que o(a) estudante submeta as diferentes fontes históricas aos processos cognitivos de analisar, comparar e questionar, para produzir um discurso sobre o passado e compará-lo com os já produzidos (Currículo Paulista, p. 455). Este contato com as fontes é importante, para que o(a) estudante problematize a escrita da história, reconhecendo que essa produção também sofre influência do período e das condições em que foi elaborada". (grifo meu) Vamos à atividade específica sugerida. Vou colocar o print porque, se eu só fizer a transcrição, nem eu acredito.

Eu sinceramente espero que seja incompetência pura. Aliás, prefiro confiar na incompetência absoluta da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo porque a alternativa seria assustadora. Mentir sobre a origem de palavras serve, na prática, para quê? Para um grupo, o que cria as mentiras, conseguir fazer pressão comercial. Acusa qualquer um de racista e destrói a imagem pública de pessoas e empresas com base nisso. Com a outra mão, oferece consultorias em "letramento" racial.

Eu vi a mentira do criado-mudo pela primeira vez em uma propaganda da Etna. Serve para simular uma ação de responsabilidade social da empresa e colher os frutos sem ter de fazer ação nenhuma. Mas isso dá certo com adultos? Enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé, diria meu amigo Ouriço de Cartola. A empresa passa a imagem de trabalhar pela inclusão mas, na prática, não precisa mudar nada.

É um ótimo chamariz para cliente que tem culpa de ser rico, o pessoal do parque de areia antialérgica ou Che Guevara de apartamento. A pessoa quer fazer revolução porque acha bonito, mas tem preguiça. Então continua vivendo no bem bom, posta o vídeo da Etna, compra um criado-mudo da Etna diz que é mesa de cabeceira. Pronto, já temos um Martin Luther King tupiniquim. Se comprar 2 criados-mudos, fica se sentindo o Mandela com 27 anos de cadeia nas costas.

Que a propaganda crie mentiras não é novidade. Que um mundo de otário acredite também não. É assim desde que o mundo é mundo. Mas não é essa a origem da mentira, é uma reportagem jornalística. Quem descobriu foi o Raphael Tsavkko Garcia, não eu. É uma reportagem de 21 de abril de 2019 no Universa, do UOL. São 3 as fontes: 2 livros e uma "ativista" que é arquiteta-celebridade. Não está nas fontes escritas a mentira sobre a origem de criado-mudo, concluo que foi dito pela "ativista" porque prefiro acreditar que minha colega jornalista não inventaria.

Vejam que coincidência interessante. A "ativista" Stephanie Ribeiro, ouvida pelo UOL na matéria que iniciou uma série de mentiras famosas sobre origem de palavras, participou do trabalho de "inclusão" da Etna.

A campanha obviamente foi um sucesso. Não no movimento negro nem em ativistas por inclusão, óbvio. Foi um sucesso para que nossos nobres revolucionários de parque de areia antialérgica aplaquem a culpa burguesa e sintam-se o novo Desmond Tutu. Basta comprar na Etna. Ocorre que o meio publicitário começou a encaixar isso em outros órgãos jornalísticos, até nas agências de checagem e programas de combate à desinformação. Todos hoje fazem o "branded content" que, em veículos sérios, também passa por checagem.

O episódio mais famoso do estrelado da Fake News do criado-mudo é quando ela foi elencada numa iniciativa da Agência de Checagem Lupa chamada "Dicionário da Desinformação". O nome faz sentido, era tudo desinformação o que tinha ali. Diversas expressões idiomáticas passaram por um processo de revisionismo histórico e foram listadas como informações checadas. Depois, a agência tentou consertar e hoje finge que nada aconteceu. Nunca foi explicado de verdade.

Verdade seja dita, a Lupa apanhou sozinha nessa mas não foi a única que fez a "arte". Outras iniciativas apoiadas por redes sociais para "combater a desinformação" também publicaram e ficaram bem quietas vendo a Lupa apanhar sozinha. Não corrigiram, claro.

A fonte de informação que legitima essa pérola como fato é uma campanha "pela inclusão" do Sesc, Senac e Fecomércio do Rio Grande do Sul. Eu fico pensando como vai incluir prá caramba esse programa. Mudar estruturas sociais e preconceitos arraigados culturalmente é uma das tarefas mais árduas para as sociedades. Deixaram isso na mão de um pessoal que usa propaganda de empresa de móvel lacradora como fonte segura de etimologia. Olha, estão de parabéns.

Houve o desmentido? Houve. Muita gente desmentiu, a própria Agência Lupa fez a checagem da checagem e concluiu que ela mesma tinha desinformado, corrigiu. Como eu sempre insisto, é negacionismo científico achar que checagem de fatos sozinha combate desinformação. Está aí o exemplo. Acabou a mentira? Não, agora foi abraçada por uma multinacional, a Amazon. Quando você procura um criado-mudo, o próprio site te chama de racista. Eu amei.

Parece apenas um detalhe, uma bobagem. Infelizmente não é. A Fake News do criado-mudo racista estar no material oficial de História do Governo do Estado de São Paulo é grave porque é estrutural. Significa que o negacionismo científico sobre "microagressões" também é legimado no material. Demonstra que as pessoas encarregadas de elaborar o currículo ou deliberadamente doutrinam ou são incapazes de distinguir mentira de verdade.

Qual seria o mal de suspender o uso de algumas palavras? Nenhum se fosse um movimento espontâneo ou um pleito legítimo, de um grupo ou de uma pessoa do seu relacionamento. Ocorre que não é. Falamos aqui de uma batida de negacionismo científico com o mais puro suco de autoritarismo. Evitar palavras parte do conceito negacionista de que as microagressões fragilizam as minorias.

É um discurso especialmente perverso por sugerir outro negacionismo bem cruel: se você é de uma minoria, você não tem conserto, é preciso que todo mundo te aprove e te proteja ou você está perdido. O mais bizarro é que o conceito de microagressão existe e foi criado por um psiquiatra negro, integrante do movimento de Martin Luther King, Chester Pierce. Ele jamais sugeriu nada parecido com controle de palavras. De quem é a ideia? De brancos europeus como Foucault, Deleuze, Marcuse, que nem da área de saúde mental são.

O controle de palavras comprovadamente é ainda mais nocivo do que ofensas. Já há trabalhos científicos mostrando (neste artigo eu cito vários) que piora a saúde mental de quem vive na lógica de policiamento de linguagem. Isso acontece devido à prática da "call out culture", você precisa chamar a atenção publicamente de quem fala uma palavra ofensiva. Como se inventa uma nova a cada minuto, qualquer um pode cair em desgraça sem entender o motivo. Viver pisando em ovos acaba com a saúde mental.

Ocorre que essa ideia, negacionismo científico facilmente verificável, é a estrutura por trás de toda a ideia de currículo das escolas públicas do Estado de São Paulo. A escolha é falar de diversidade e sobre como escolher fontes de notícia desprezando fontes científicas e adotando crendices negacionistas. Se a gente segue nessa toada, daqui a pouco está ensinando que a terra é plana na aula de ciências.

Nem só de verdades e ciências vive o ser humano, até porque a ciência não explica tudo. Mas é necessário separar com a mais absoluta clareza o que é objetivo e verificável do que é subjetivo ou apenas um sentimento. É inadmissível que a escola pública ensine justamente o caminho oposto. Sei que vocês já cansaram de me ver citar a Hannah Arendt, mas vou citar de novo. Se bobear, todos os dias: "O objetivo da educação totalitária nunca foi incutir convicções, mas destruir a capacidade de formar alguma".

*ATUALIZAÇÃO: Quer saber qual a real origem do termo criado-mudo? Todos os detalhes neste outro artigo.

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