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Cultura do cancelamento: cantora Adele é atacada por “apropriação cultural”
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"No Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio e, se quiserem acreditar, vaia-se até mulher nua", cravou Nelson Rodrigues. Talvez estejamos todos vivendo em um gigantesco e eterno Maracanã nos últimos tempos, só que sem o futebol. O motivo da reunião parece ser mesmo para xingar. Se não for isso, talvez seja a espera por um espetáculo que jamais se inicie.

A cantora inglesa Adele, que já foi xingada por ser gorda demais, agora está sendo xingada por estar magra demais. Até aí, parece ser o prato do dia da vida dos famosos. Muito antes das redes sociais, um dos esportes favoritos de muita gente era falar mal de artista.

Se Adele é uma cantora recordista de vendas, conquistou mais um recorde: cancelamento mais bizarro. Os justiceiros sociais de teclado cancelaram a cantora por apropriação cultural. Eles não sabiam que a cultura em questão era a do bairro dela, Tottenham.

A cantora, que tem quase 39 milhões de seguidores no instagram, compartilhou uma foto em que lamenta o cancelamento do carnaval de Notting Hill, em Londres, devido à pandemia de coronavírus. O problema não foi o corpo, o biquíni com bandeira da Jamaica nem as penas nas costas, foi o penteado. Não sabe qual o problema? Ah, então você é racista, segundo um pessoal que se diz politicamente correto, civilizado e bem intencionado.

Tudo começou com um único usuário, o jornalista norte-americano Ernest Owens, que provavelmente não sabe nada do tal do carnaval de Notting Hill. Ele viu o penteado, não aguentou e tuitou: "Se 2020 não podia ficar mais bizarro, Adele nos dá coques Bantu e a apropriação cultural que ninguém pediu. Isso marca oficialmente todas as mulheres brancas mais importantes do pop como problemáticas. Odeio ver isso."

Outra celebridade do jornalismo norte-americano, Jemele Hill, já mostrou o poder da sororidade respondendo ao colega com "Ninguém. Absolutamente nenhuma p*** de pessoa. Nenhuma pessoa, Adele".

Os dois são jornalistas premiados, famosos e ativistas. Sabem exatamente como se faz uma apuração. Não basta bater o olho em uma foto e vaticinar. Ainda que ambos sejam negros, conheçam bastante sobre cultura africana e tenham alguns sentimentos específicos ao ver a foto da cantora Adele, podem estar enganados. Têm o direito de se manifestar mesmo assim? Claro! É o que fizeram no buraco negro do recalque mundial: o Twitter.

O debate arrastou milhares de pessoas e foi uma troca de acusações intermináveis entre negros e brancos, falando de herança histórica, apropriação cultural, cultura pop e, claro, caindo para a política - os norte-americanos estão numa campanha eleitoral quente para a presidência da República. A única coisa que ninguém debateu mesmo era a foto, as razões dela e o que é o tal carnaval de Notting Hill.

O penteado, os tais dos coques Bantu, ficou famoso nos Estados Unidos não exatamente porque esse pessoal estuda e sabe de onde ele vem, mas porque a Rihanna usa e era marca registrada da personagem sensacional de Uzo Aduba na série "Orange Is The New Black". Faz alguns anos que existe, nos Estados Unidos e por causa da cultura pop, a discussão importantíssima sobre dever ou não cancelar mulheres brancas que usem o tal penteado. Eu fico até curiosa sobre como lidar com as latinas e asiáticas, mas tive receio de perguntar.

Os lacradores permaneceram indomáveis até que apareceram os ingleses na discussão dizendo que o carnaval de Notting Hill é uma celebração dos imigrantes jamaicanos e que Adele cresceu em uma das maiores diásporas da Jamaica, Tottenham. Daí vieram os Jamaicanos dizer que adoram quando as pessoas se vestem e se penteiam como eles no carnaval londrino. E os lacradores? Não mudaram de posição.

Acredite ou não, estão há mais de 24 horas debatendo e sustentando que pouco importa a origem de Adele ou se ela usa o tal do penteado no carnaval tradicional do bairro dela desde criança, é apropriação cultural do mesmo jeito. Para eles, o fato de uma estrela branca do pop usar um penteado de origem africana basta para colocar o carimbo.

Houve quem tentasse mitar argumentando que mulheres negras alisam o cabelo, usam apliques e perucas. E daí vêm os lacradores dizendo que elas foram obrigadas culturalmente pelo ocidente a fazer isso enquanto tranças afro e todos os tipos de penteados africanos continuam sendo marginalizados. E eu continuo sem entender qual o problema com o cabelo da Adele se a intenção é que o tal do penteado deixe de ser marginalizado.

Nesse ponto, o debate já está num nível de agressividade de xingamentos, com rivalização não só entre negros e brancos mas também entre norte-americanos e ingleses furiosos com a crítica não só às suas tradições como também a uma diva pop querida. É um processo que tem acontecido de forma recorrente, nos mais diversos assuntos e desqualifica o debate em si, cansa as pessoas. Quando ninguém admite que erra nem muda de opinião não é debate nem se evolui.

O descrédito de pessoas que dizem lutar por pautas igualitárias ou identitárias é um fenômeno que cruza fronteiras e tem uma única raiz: falta de vida real. Na vida real, mulher escolhe o penteado que fica bom para ela, simples assim. E, se bobear, troca no dia seguinte.

Entendo que muitas pessoas tendem a associar a coisa de alisar o cabelo com racismo. Sou jovem há muito mais tempo, quando a gente fazia permanente porque cabelo liso era feio. Diziam de nós, mulheres, que "quem tem liso quer crespo e quem tem crespo quer liso". O conceito de beleza é diferente em cada lugar e muda com o tempo. Aliás, nós vamos mudando o que consideramos bonito ou feio ao longo da vida.

Há casos em que o racismo, um problema real, extrapola para todas as características daquela etnia, como o cabelo, o nariz, os olhos? É óbvio que sim. Mas o inverso não é verdadeiro. Nem todas as nossas escolhas estéticas passam necessariamente pelo conceito étnico. Pessoas reais sabem que, muitas vezes, nem sabemos o que é aquilo e de onde vem, simplesmente achamos que é bonito, nos favorece, alegra, queremos provar.

Também há uma alegria em trocar roupas, costumes e modos de fazer as coisas que é característica da espécie humana e parece ser ignorada pelos lacradores das redes sociais. Quem tem amigos estrangeiros ou de outros lugares do Brasil gosta de ensinar e aprender todo tipo de costume, seja culinária, artesanato, roupa, penteado, como servir a mesa de um jeito diferente, até como fazer a unha.

Não existe política sem empatia, como querem os que berram pelo que juram ser "causas". Não há causas sem pessoas que lutem por elas. E tudo o que é humano é falho e, ao mesmo tempo, sagrado e sublime.

A militância da lacração começou a ganhar força com o crescimento das redes sociais, por volta de 2010. O justiçamento social de teclado ignora os componentes humanos e não precisa ter empatia, afinal é como se o outro fosse uma máquina obrigada à perfeição e destinada ao lixo se falhar ou se o justiceiro social achar que falhou.

A cultura do cancelamento nasce do conceito cruel de jogar fora seres humanos que, por uma razão ou outra, não sejam adequados aos olhos de um determinado grupo. Se todo o episódio gira em torno do debate sobre racismo, vale lembrar uma frase de Martin Luther King: "We must learn to live together as brothers or perish together as fools." Nós devemos aprender a viver juntos como irmãos ou morreremos juntos como tolos.

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