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Danem-se os fatos e o sigilo da fonte
| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Não escrevi sobre a história da gloriosa estagiária de 45 anos antes porque evito falar de Allan dos Santos. Soube de sua existência quando trabalhava em O Antagonista, apurei com a polícia um fato ocorrido em São Paulo e nem imaginava, naquele longínquo 2017, que havia comunidades dedicadas a viver em uma realidade paralela. Como a apuração policial não coincidia com a imaginação de um grupo sobre o ocorrido, houve revolta.

Sempre educado, o colega escreveu algo como: "comeu m*rda?". Eu agradeci que compartilhasse comigo os hábitos alimentares da família dele, mas informei que em casa preferimos salada. Então os xingamentos começaram a voltar-se contra o site O Antagonista. Allan dos Santos já tinha fãs na Empiricus. Ricardo Schweitzer, analista financeiro, foi até a sala do site O Antagonista reclamar da minha postura. Tomei bronca dos chefes. "Você é boa de arrumar encrenca", ouvi. Não sabia que iniciava-se ali uma tradição.

Além de dizer que eu comia m*rda, Allan dos Santos também ajudou a espalhar o boato de que eu seria satanista e pedófila. Chegou a fazer um vídeo de mais de meia hora no Terça Livre intitulado "Gazeta, deixe de ser Fake News", cuja capa no YouTube era meu rosto. Bradava que o jornal e eu havíamos recebido dinheiro para escrever ESTE ARTIGO e oferecia pagamento em troca de mudança de opinião. Por outro lado, Allan dos Santos foi o ÚNICO jornalista a confrontar publicamente a pessoa que me assediou na Jovem Pan. Por isso tudo preferi a prudência ao escrever sobre ele e a transparência com você.

Li cuidadosamente as reportagens e também os trechos completos das conversas entre Allan e a estagiária de 45 anos no inquérito. O noticiário lembra um episódio que vivenciei naquela turbulência de CPIs à época do Mensalão. Havia várias em funcionamento e, em dado momento, diversos senadores foram chamados a depor na Polícia Federal. Escutas telefônicas haviam registrado uma mensagem em que senadores manifestavam preocupação com a vida e a integridade física de um dos acusados.

A conversa rolou durante meses na imprensa. Em dado momento, assumiu-se que o homem estava mesmo marcado para morrer devido ao rolo todo das CPIs. Virou debate nacional. E olha que rede social ainda estava só começando e não tinha impacto na imprensa como tem hoje, ainda não ditava o noticiário. Naquele ponto, todos - inclusive eu - achávamos ser uma realidade a ameaça. A grande curiosidade estava em quem seria o autor das ameaças e qual o senador que havia denunciado.

Um dia o então senador Heráclito Fortes assume ser o autor do áudio falando da ameaça ao envolvido na CPI. Era uma piada. O sujeito havia brigado com um "affair" que lhe quebrou metade da casa. Como ele não apareceu em uma festa, o senador deixou o recado na caixa postal. Dizia algo como: estamos todos aqui preocupados com a sua vida e sua integridade física, não me diga que a alemã aprontou de novo. Minha intuição diz que a história da estagiária de 45 anos ser fonte ou informante de Allan dos Santos é algo do mesmo naipe.

Ela é fonte ou informante? Pelo que consta, nem uma coisa nem outra. O que ela informou exatamente? Não tem nada nas reportagens nem no inquérito. As conversas dela com Allan dos Santos parecem mais uma tentativa de conseguir estágio num lugar de que gostasse mais, como o gabinete da deputada Bia Kicis. Para aproximar-se do núcleo ideológico que admira, enumera uma série de obviedades e demonstra que acesso a informação quente mesmo não tinha.

À época, Allan dos Santos nem investigado pelo STF era. Publicar hoje a frase "fique como nossa informante lá" induz a erro. Dá a impressão de que, após virar alvo do Inquérito do STF, ele teria informantes nos gabinetes para monitorar toda essa confusão que temos visto no noticiário. Dá ainda outra impressão, a de que essa estagiária realmente teria condições de ser fonte ou informante por ter acesso a dados importantes ou sigilosos. Nada disso é fato.

Estagiar no STF pode dar prestígio, mas o salário de pouco mais de R$ 1200,00 não deve ser lá muito atrativo para uma mulher de 45 anos. Some-se a isso o fato de ser olavista e, portanto, rejeitar o STF e não acreditar naquele trabalho. Trabalhar no gabinete de alguém como Bia Kicis seria o sonho de alinhamento ideológico no trabalho para um olavista. Além disso, os salários mais baixos da Câmara são por volta do dobro do estágio no STF.

A história de ficar como "informante" no gabinete, dita entre risadas, parece mais uma piada para se livrar do pedido de ajuda do que um recrutamento. A estagiária deveria imaginar que Allan dos Santos teria influência direta no gabinete de Bia Kicis, já que são duas estrelas do olavismo. Ele tenta desconversar, convencê-la a não continuar pedindo a ele a vaga. Ela tenta mostrar que é leal e pode ser útil porque tem informações preciosas, só que não tem. Repete ilações e lugares comuns do seu núcleo ideológico.

Aliás, na conversa divulgada não temos fonte nem informante, temos desinformante. Ela dá a Allan dos Santos uma informação errada do andamento do processo do ex-presidente Lula. Sobre o "sigilo da fonte", a obrigação é do jornalista e ele manteve. Mas outros podem revelar a fonte do jornalista? Como possibilidade, sim, lembrem-se da Vaza Jato e de diversos episódios envolvendo jornalistas e integrantes da Lava Jato. Vira e mexe publicavam que foi tal pessoa quem passou a informação. Eu não faria e não creio que se deva fazer, explico as razões.

A checagem de fatos pode ser complexa. Conseguir documentos sigilosos é um processo ainda mais espinhoso. Nós, jornalistas, gostamos dessa aura de heroísmo. Parece que a informação vem sempre de alguém altruísta indignado com o estado de coisas e que precisa ser protegido. Na minoria das vezes é assim. Vazamento de informação tem interesses por trás e, para confirmar esses interesses, muitas vezes é preciso provocar fontes. Recortadas, como foram, as conversas mais desinformam do que informam. Aliás, repetem o ato da estagiária em busca de outra colocação.

Agora puxo a sardinha para a minha brasa, a do Novo Poder e da Cidadania Digital. Esse sarapatel de coruja só aconteceu porque alguns líderes empresariais, políticos e da sociedade civil ainda não reconhecem a nova configuração de poderes na era digital. Além do Quarto Poder, que é a imprensa, as Big Techs e grupos formados nas plataformas dela já mudaram a forma como se exerce poder. Não reconhecer essa dinâmica levou nosso país a recrutar para a Suprema Corte uma estagiária aparentemente disposta a espionar a Suprema Corte. É grave porque seria fácil evitar.

Falo muito à vontade sobre o tema estagiários do STF porque já fui gestora de alguns e o recrutamento é feito pelo CIEE, empresa fundada por meu tio Victorio D'Achille Palmieri. O mundo mudou e nos afeta em decisões do cotidiano. Quais são as premissas para escolher um bom estagiário? Obviamente ideologia não deveria estar entre elas. Ocorre que não falamos de ideologia, mas de identidade social. Isso interessa a todo departamento de Recursos Humanos, principalmente os que estão no topo do poder.

Hoje vivemos a polarização emocional nas redes. Ela não se dá por diferenças ideológicas baseadas em crenças, mas em rejeição. Você contrataria para trabalhar no gabinete do presidente da República uma pessoa que define a si mesma como antibolsonarista? Ah, se for qualificada... Suponhamos que ela tenha, em algum momento, parabenizado Adélio ou dito que era "só girar a faca". São só palavras, certo? O gabinete de Bolsonaro seria o melhor lugar para ela trabalhar e ela seria realmente a pessoa que mais contribuiria naquela função?

Voltemos agora ao STF. Agora vai ter de entrar até a Polícia Federal no meio para avaliar se era só piada mesmo a história de "informante" ou se a pessoa realmente arrumou emprego num órgão público com a intenção de assumir este papel. Houve passeatas jogando rojões contra o STF, ameaças de morte contra ministros, defesa de estupro das filhas deles e isso vem de ambos os extremos ideológicos. Já apareceu semana passada um de esquerda defendendo manter vivo o ódio, inclusive contra o STF e arrancar os ministros de lá pelos cabelos.

Ignorar o Novo Poder das Big Techs e dos grupos formados nessas plataformas colocou, na prática, as institucionalidade da cúpula do Judiciário em risco. Quem não conhece a dinâmica da Cidadania Digital pensaria em barrar todos candidatos que já falaram mal do STF. Daí acho que nem ministro ia ter como escolher. As pessoas que conhecem a dinâmica digital percebem a importância dos grupos para a identidade social. Quem posta o dia inteiro há anos contra uma instituição e é parte de um grupo que também faz isso pode representar um risco para ela.

Esse recrutamento foi feito em 2017, quando as coisas ainda não eram tão claras para ninguém. A estagiária, mesmo tendo 45 anos, foi alertada pelo gestor para maneirar nas postagens atacando o STF enquanto trabalhava lá. Ocorre que não eram apenas postagens, expressão ou desabafo. A pessoa é parte do grupo olavista, compartilha a convicção de que o STF precisa ser destruído, é maligno, nada que venha dali presta. Por que quer trabalhar justo lá? No caso, talvez fosse porque precisa. O que ela queria mesmo era trabalhar com Bia Kicis - e faz todo sentido.

Na década passada, falou-se muito em "pertencimento" na área de Recursos Humanos. É a identidade que a pessoa tem com os objetivos, missão e visão do lugar onde trabalhar. É o antigo "vestir a camisa da empresa". Antes, buscava-se por meio de entrevistas e dinâmicas de grupo perceber essa afinidade. Hoje temos dados que as próprias pessoas publicam em diversas redes para ajudar a verificar as chances de pertencimento. A grande questão agora é saber usar com estratégia e justiça.

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