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Danilo Gentilli, a vaca, fake news e as Karol Conka da imprensa brasileira
| Foto: divulgação

Quantas pessoas podem ter raiva de você porque uma outra pessoa apresentou você da forma errada? Danilo Gentilli é um caso curiosíssimo. Não faltam piadas de baixo calão para que ele seja malhado em praça pública mas, curiosamente, ele é mais malhado pelo que não fez do que pelo que fez. Nos últimos dias, nas redes sociais, houve um intenso compartilhamento da "notícia" de que o humorista iria pagar indenização à maior doadora de leite do Brasil por chamá-la de vaca. Fiquei surpresa ao ver que jornalistas acreditavam nisso. Mais surpresa ainda ao ver colegas acreditando que Danilo Gentilli é bolsonarista. Todos estamos sujeitos às fake news.

Há mulheres que ficam com aversão a quem faz piadas ofensivas, como Danilo Gentilli. Compreendo. Não é o meu caso, gosto de pessoas com as quais posso falar abertamente sobre o que me incomoda e que me falam abertamente sobre os meus erros. Tenho aversão a quem patrulha discurso mas é conivente com ações perversas na vida real. Karol Conka no BBB é a amostra de um tipo social que existe em toda a sociedade, inclusive no jornalismo. Precisamos aprender a lidar com o bullying disfarçado de bom-mocismo.

O caso da maior doadora de leite do Brasil é um exemplo clássico de como é possível travestir de militância bem intencionada uma mistura de sadismo com incompetência. É nesse ponto que geralmente os feministos me interrompem para perguntar: "mas, como mulher, você está ao lado dele neste caso?". Meu falecido pai era um homem antiquado, mas considerava que mulher também é ser humano e eu aprendi assim. Peço desculpas aos feministos, mas não aceitarei o rebaixamento e continuarei usando o lugar de fala de ser humano mesmo. Um erro não justifica o outro.

A "piada" que Danilo, Marcelo Mansfield e a equipe da Band fizeram com a notícia do portal Mundo Bizarro foi horrível. Para mim, a notícia do portal já havia passado do limite e os compartilhamentos dela na internet também, não teria colocado no programa. Para a Justiça, o maior problema foi com a montagem da foto, exposta na televisão. O segundo foi a piada de cunho sexual de Marcelo Mansfield com a doadora de leite materno. A indenização já foi paga, ao contrário do que se alardeou nas redes sociais. O valor de R$ 80 mil também não estava correto e o humorista não era o único réu, como faziam parecer as notícias. Fizeram o que não deviam, tomaram processo e foram punidos. O que mais os justiceiros sociais querem?

A invenção da piada da vaca, repetida à exaustão em manchetes de diversos órgãos sérios de imprensa e manifestações de jornalistas profissionais, é mau jornalismo e não se justifica. A punição é o pagamento de indenização, não a difamação em massa por gente que depois vai fazer gaslighting e se dizer perseguida. A defesa do jornalismo profissional e do nosso compromisso com o público passa por disciplinar as diversas Karol Conka espalhadas pelas redações. Jornalismo não se faz com boas intenções, se faz com técnica, disciplina e eficiência.

O caso Danilo Gentilli é um exemplo lapidar da cultura do cancelamento. Mesmo num meio profissional em que a apuração e os fatos são os principais instrumentos de trabalho, contra ele se permite a mentira deliberada. Ao atacar uma pessoa que foi colocada como símbolo daquilo que não se deseja, o cancelador pretende dizer ao mundo que não tem aquele defeito dentro de si. Ontem, diversos colegas jornalistas foram às redes defender jornalistas que mentiram sobre o humorista e foram confrontadas por ele. São os mesmos que silenciam em cumplicidade diante de denúncias de assédio sexual nas redações, que cancelam vítimas para não desagradar assediadores. Tweet é igual Nota de Repúdio, serve para fingir que a gente está fazendo algo.

Vi um grupo feminista indignado com a piada que o humorista nem contou, a da vaca. Freneticamente compartilhavam xingamentos, já que se colocar contra aquele símbolo inventado da agressão à mulher passa a ser uma expressão de pertencer ao grupo. É o mesmo grupo que compartilha piadas sexistas sobre Marina Silva para defender Lula. Repetem sistematicamente todas as mentiras inventadas sobre ela por João Santana na campanha e acrescentam, com um requinte de crueldade, que ela é recalcada porque Lula escolheu Dilma. Que defesa da dignidade da mulher! Estou aqui aplaudindo de pé.

Entre os canceladores da internet, tudo pode contra aquele que escolho como símbolo do eu digo rejeitar. Essa regra não pode valer para o jornalismo, sob pena de cada vez mais se confundir com a atividade dos influencers amigos do poder, cada vez mais com voz na imprensa. A piada da vaca não foi a primeira, a única nem a mais grave invenção sobre Danilo Gentilli chancelada pelo jornalismo profissional sob a desculpa do bom-mocismo. Quem perde é o jornalismo.

A piada que não existiu, a da vaca, é citada até hoje por muita gente bem informada que eu conheço como exemplo do que não deve ser piada. Se bem que é verdade, já que ela nunca foi feita. Há casos mais graves, como a falsa acusação de racismo. Novamente, podem fuçar os vídeos e as redes do Danilo Gentilli que haverá farto material para problematizar, acusar e debater. Por que fazer o grande carnaval justo em cima de uma mentira, do que ele não fez?

Em 2014, o humorista fazia o papel do deputado Atilio Pereira, um congressista que produzia apenas inutilidades. Gravou um esquete (abaixo) em que o deputado apresentava seu projeto de lei revolucionário: o fim da vírgula. No plenário da Câmara dos Deputados, o personagem exemplificava com duas placas a inutilidade das vírgulas. Na primeira se lia: "Não, sou negro, graças a Deus". Na outra se lia: "Não sou negro graças a Deus". A foto dele ao lado da segunda placa circulou pela internet com a versão de que ele estaria desfilando com aquele cartaz pela Câmara.

Assim que se aponta a mentira dos difamadores travestidos de antirracistas, eles questionam a qualidade da piada. Por pior que seja a piada, não justifica ter lideranças do movimento negro e pessoas que trabalham com informação chancelando uma mentira. Distribuir para milhões de pessoas o print de uma pessoa ao lado de uma placa "não sou negro graças a Deus" com frases como "todo ódio que eu tenho desse Danilo é pouco" tem consequências na vida real. No caso, pessoas que acreditaram na versão, picharam a casa do humorista com a palavra racista.

Quando organizações ligadas à igualdade racial se deixam seduzir por campanhas de ódio acabam torpedeando a própria causa. Há um volume crescente de pessoas dispostas a negar a existência do racismo por reação emocional a mentiras e injustiças de pessoas ligadas a algum momvimento. É impossível prevenir que a maldade humana se manifeste, ainda mais num conjunto de pessoas, isso acontecerá sempre. Por isso precisamos aprender a proteger as causas que importam e conter as falhas humanas. Atualmente, temos feito o oposto, chancelando maldade travestida de luta igualitária.

Um terceiro episódio com Danilo Gentilli envolveu diversos jornalistas, infelizmente. Houve um caso horroroso de estupro coletivo no Rio de Janeiro. Alguém pegou um comentário do humorista de anos antes, sobre Big Brother, apagou a data e postou como sendo sobre o estupro. Ficou parecendo que ele estava dando razão ao estuprador. Ninguém se retratou, como se faz quando a prioridade é o jornalismo. As pessoas viram a mentira mas justificaram e dobraram a aposta, como se faz quando a prioridade é a militância.

Militantes de internet nunca erram porque só erra quem faz. São muito valentes, corajosos, estridentes, estão sempre com a razão. Flagrados em erro, jamais reconhecem. Sempre dobram a aposta, dizem que estão sendo perseguidos, injustiçados, causam incômodo porque sua luta está funcionando. Danilo Gentilli é humorista, erra muito e paga por isso. Eu sou jornalista, erro muito e pago por isso. Você provavelmente erra muito e paga por isso. Erramos, reconhecemos, reparamos como dá, levantamos e tentamos ser melhores do que fomos naquele momento.

O jornalismo militante não erra jamais e não se desculpa. O jornalismo tradicional e profissional tem compromisso com o público e com os fatos, jamais com o erro ou a vaidade pessoal. A imprensa tradicional sempre teve aquela coluna "erramos", em que confessávamos nossas falhas humanas. Eu nunca tive problema em dizer abertamente que errei e dar espaço para resposta a quem quer que seja. Já fiz isso inclusive com desafetos pessoais, pessoas que me perseguem e ameaçam. Minha relação com o meu público está acima da minha relação com um desafeto, aprendi assim no jornalismo tradicional.

Sugiro que você pesquise nas redes sociais vídeos do BBB em que aparece uma moça chamada Juliette. É pedagógico e talvez você já tenha presenciado situações assim ou passado por elas. A pessoa que se diz a mais defensora da igualdade - mas pode ser também da moral, dos bons costumes, do conservadorismo, da família, dos animais, do veganismo - escolheu alguém como alvo aleatoriamente. Karol Conka foi lá tirar onda e humilhar a tal da Juliette. A partir desse momento, todos os que fazem parte do grupo mimetizam esse tratamento e minimizam toda e qualquer agressão. É assim quando se permite que a maldade travestida de militância contamine o jornalismo.

Quem é de direita dirá que a esquerda é assim mesmo. Quem é de esquerda dirá que a direita é assim mesmo. Eu pergunto: quantas pessoas do seu campo ideológico ou grupo social você já impediu de desumanizar alguém em nome de um bem maior? Se você ainda não fez isso, é hora de abrir os olhos para o que está ao seu redor. Vivemos a cultura do cancelamento. Em todo grupo há alguém que sobe à liderança desumanizando e humilhando outra pessoa até que ela fique isolada, se torne tóxica. Só acontece com colaboração.

Pouco adianta Danilo Gentilli mostrar fatos e tentar convencer pessoas de que estão batendo nele pelo que não fez quando poderiam muito bem bater por alguma coisa que ele fez. No caso de progressistas ou jornalistas, vão minimizar a mentira e a difamação, dirão que ele quer agradar o público bolsonarista, é machista e racista. Dessa forma, qualquer desumanidade é permitida, afinal são justiceiros sociais contra o mal. No caso de bolsonaristas, ele é um traidor vendido que acabou optando pelo establishment no lugar do mito, então toda mentira e ameaça contra ele está liberada.

Esse tipo de comportamento perverso sempre existiu, mas a hiperconectividade gera uma polarização que torna os grupos sociais cada vez mais importantes para os indivíduos. A lógica passa a ser defender o grupo e atacar o de fora, o que não se ajoelha diante de regras do grupo, qualquer que ele seja. Por isso vemos o fenômeno de forma tão forte, porque fica mais difícil para muita gente colocar um freio à perversidade dentro do próprio grupo. É fácil fazer no grupo adversário, teremos apoio. No próprio, nos tornamos o adversário.

Quem acompanha minhas redes vê que sou unanimidade, principalmente entre os homens. O feministo desconstruidão espalha aos quatro ventos que eu apóio ou já apoiei Jair Bolsonaro, ao mesmo tempo em que despeja sobre mim todo o gingado machista que parece um episódio de Mad Men. Muitos irmãos evangélicos bolsonaristas acreditaram numa teoria QAnon que me coloca como integrante de uma rede internacional de satanistas pela legalização da pedofilia. Conto nos dedos de uma única mão os integrantes desses grupos que foram corretos o suficiente para colocar a verdade.

As pessoas seguem a vida como o que vemos no Big Brother. Está lá a Karol Conka tocando o horror mas se dizendo boazinha e falando que só reage ao que pessoas terríveis fazem. As tais pessoas terríveis não são santas, mas são seres humanos, noção que deixa de existir no grupo todo. Para que todos se sintam bonzinhos, antirracistas, feministas e inclusivos, precisam isolar os alvos. Minimizam agressões e injustiças, tratam a pessoa como louca quando reclamam, inventam histórias, tiram sarro pelas costas. Se isso é um pudim de esculhambação quando acontece no Big Brother, precisa urgentemente parar de acontecer no jornalismo.

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