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Debate inflamado sobre pedofilia favorece estupradores de crianças
| Foto: Pixabay

Qual a intenção de autoridades, comunicadores e influencers que provocam debates tão rasos quanto acalorados sobre pedofilia? Difícil saber, somente eles têm essa informação e jamais teremos uma forma de confirmar se dizem a verdade. O resultado obtido por quem provoca esses debates é muito engajamento nas redes e fama de fazer justiça, de ser uma pessoa correta. Há, no entanto, um dano colateral: aliviar as penas dos estupradores de crianças.

Estupro já é um crime que causa repugnância. Quando se coloca criança na equação, é unanimidade: nem criminoso perdoa uma covardia dessas. A oportunidade de expressar nossa indignação diante do horror dá a sensação de fazer justiça e este sentimento é explorado por quem pouco se importa com a punição de criminosos ou a proteção de crianças. Aqui não falamos de ideologia, mas de oportunidade de obter seguidores e construir reputação nas redes sociais. Quanto mais um assunto mexe com o sentimento legítimo das pessoas, melhor ele é para obter engajamento. No final das contas, engajamento é dinheiro para o influencer, as plataformas e os acionistas das plataformas.

Não creio que seja a intenção de quem lança o debate sobre pedofilia de forma emocionada, rasa e desconectada da realidade dos fatos obter o resultado da redução de pena para estupradores de crianças. Mas é um dano colateral deste movimento que inflama a sociedade e gera leis ruins, baseadas em marketing e que fazem muito sucesso em redes sociais. Eu aprendi sobre este fenômeno errando. Em 2009, quando se reformou a Lei do Estupro, fui favorável ao endurecimento das penas porque acreditava que isso significaria punições mais rígidas e certas. Errei.

Ao chamar de estupro uma série de condutas que antes tinham outro nome, como atentado violento ao pudor ou qualquer outro ato libidinoso não consentido, as penas de quem cometeu esses outros crimes ficou menor. Como? Para mim, lá em 2009, fazia sentido que, se a pena fosse maior no papel, ela seria maior na realidade. Nem sempre a vida real faz sentido, como demonstrou a dissertação de mestrado de Nohara Paschoal em 2014, pela USP: "O estupro, uma perspectiva vitimológica", que também virou livro. Do jeito que a lei ficou, atos libidinosos, que vão desde passar a mão, são enquadrados como estupro, crime hediondo. A solução do mundo real tem sido enquadrar esses casos como contravenções. Antes, essas pessoas eram presas, agora não são mais e sabem disso.

Há casos concretos em que o roubo de passe de ônibus da vítima de estupro acaba resultando na mesma pena do estupro em si. Antes da reforma de 2009, estupro era apenas contra mulheres, tecnicamente penetração vaginal. Outros atos eram enquadrados em atentado violento ao pudor. Quando cometidos em conjunto, as penas de 6 anos se somavam e resultavam em 12 anos. Hoje, a punição para os dois crimes é a metade, quase a mesma dada a quem rouba um passe de ônibus e R$ 10. Infelizmente, é um caso concreto.

"Um dos casos analisados, quando do estudo jurisprudencial, mostrou que o agressor que praticou contra uma mesma vítima conjunção carnal, coito anal e oral forçados foi punido com seis anos de reclusão. O que mais surpreendeu, contudo, foi que o agressor, após praticar todos os atos sexuais contra a vítima, roubou dela a quantia de R$ 10,00 (dez reais) e um bilhete múltiplo de passe de ônibus. A pena para o roubo praticado: 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses, de reclusão.", explica Nohara Paschoal no livro que analisou 2200 julgamentos de estupro pelo Tribunal de Justiça de São Paulo após o "endurecimento" da lei. Na prática, as penas são agora a metade.

Quando se inicia o debate acalorado e sem base em conhecimento que mistura os conceitos de pedofilia e abuso sexual infantil, o cidadão comum pode ter uma sensação de justiça ao se insurgir contra criminosos, mas está ajudando a livrar da cadeia quem estupra crianças. Hoje, a maioria dos estupros no Brasil, 53,8%, é contra crianças.

Há uma diferença entre pedófilos e estupradores de criança. Nem todo pedófilo é estuprador, embora sejam mais perigosos que os criminosos comuns. A maioria dos estupradores de criança não é pedófilo, mas se beneficia da confusão entre os conceitos para encontrar brechas jurídicas que aliviem a pena. O debate ideológico que os políticos costumam chamar de "pedofilia" não tem nada a ver com esses conceitos, é sobre idade mínima de consentimento. A diferença está entre quem compreende que pessoas menores de 14 anos podem consentir em uma relação sexual e quem entende que a lei está correta e abaixo dessa idade, mesmo com consentimento, é estupro.

Vira e mexe essa discussão volta ao debate político porque rende frutos. No momento, estamos entre uma publicação do presidente da República em redes sociais e veículos jornalísticos rebatendo um tuíte, o que beira o surrealismo. Eu gosto mais de documentos e fui a eles. A história toda começa na ação que está no STF pela descriminalização do aborto e um argumento feito pelo PSOL, que é juridicamente sem sentido e moralmente problemático. São colocados ali casos concretos de meninas menores de 14 anos que estão grávidas, o que não tem sentido jurídico porque se trataria de estupro, caso em que a lei brasileira já permite aborto. Moralmente é problemático porque se ignora a figura do estupro, mas isso não tem efeito nenhum no processo em si.

Confunde-se propositalmente no debate público a questão da flexibilização da idade de consentimento com a expressão "legalização da pedofilia", utilizada para significar um sinal verde para estupro de crianças. No ambiente penal, o debate é absolutamente inútil. No ambiente político e de comunicação gera engajamento. Para a sociedade em geral, diminui a conscientização e as formas de prevenção de abusos contra crianças. Golaço para os estupradores.

A idade de consentimento no Brasil é de 14 anos. Qualquer ato libidinoso de um maior de idade com alguém menor de 14 anos é considerado legalmente estupro, crime hediondo. Nossa lei trata rigorosamente da mesma forma um homem adulto que abusa de uma menina de 10 anos e um casalzinho adolescente de 18 e 13 anos que se conhece desde a infância. Há quem defenda mudanças na idade de consentimento e quem defenda tratamento diferente de acordo com a natureza dos casos. Esse debate não pode ser chamado de legalização da pedofilia porque é mentira e impossível: seria como argumentar que alguém quer legalizar a psicopatia.

Não é possível "legalizar" a pedofilia porque ela é um Transtorno da Preferência Sexual, há décadas definida com a CID 10 F65.4. Pedófilos são raros e nunca conseguem manter nenhum tipo de envolvimento sexual com adultos nem se estimular sexualmente com adultos. Pouco importa se o indivíduo vive suas perversões na vida real, em fantasias ou resolveu simplesmente bloquear a sexualidade porque tem horror a ser o que é, continua sendo pedófilo porque se trata de um transtorno, uma característica. É importante notar que essas pessoas distinguem o certo do errado e conseguem controlar seus impulsos, se agem é porque quiseram e assim decidiram.

A maioria dos estupradores de criança não tem nenhum transtorno, tem apenas maldade. 53,8% das vítimas de estupro no Brasil são meninas menores de 13 anos e os agressores são homens próximos, padrastos, pais, parentes, que têm vida sexual com pessoas adultas. Só que a defesa se aproveita da fama distorcida da "pedofilia" para aliviar penas e os criminosos se aproveitam de todo o frenesi em torno dos "pedófilos" para agir impunemente.

Quando esse debate se torna público, nossa primeira preocupação é proteger nossos filhos e as crianças que conhecemos e amamos de seres assustadores e anormais que vemos no noticiário vez ou outra. Há os que compartilham material de pornografia infantil pela internet e os que tentam entrar em contato com crianças, sempre alguém distante, com comportamento esquisito e suspeito. Claro que precisamos ensinar as crianças a se defender desses tipos, mas sabendo que eles não são o maior risco.

O maior risco de estupro de crianças está entre os conhecidos, os que circulam pela casa e passam muito tempo sozinhos com a criança, os que têm a confiança dos pais ou tutores. Em famílias conflituosas, o abuso pode ser instrumento de vingança. Esses são os casos reais, infelizmente. Proteger nossos filhos contra passa primeiro por falar sobre eventuais comportamentos inadequados das pessoas que amamos e em quem confiamos. É complicado, doloroso e necessário. Também é sobre esses que precisamos ter olhos mais atentos, não sobre o pedófilo imaginário distante das nossas vidas contra o qual guerreamos bravamente nas redes sociais e sempre vencemos.

Uma boa defesa de estuprador de criança vai pedir laudo psiquiátrico. A chance é ínfima, já que a maioria é casado e tem vida sexual com adultos, mas vai que é pedófilo, vão argumentar os defensores. A maioria dos juízes consente em se fazer um laudo porque diagnóstico de pedofilia não diminui pena. Suponha que, para agilizar o processo, a defesa faça um laudo particular e ache outro distúrbio que diminui ou elimina a pena? Mais comum do que você pensa.

Cada pessoa que chama um estuprador de criança de pedófilo está dando a todos esses bandidos a chance de conseguir inimputabilidade ou redução de um a dois terços da pena, usando brechas legais. Os que fazem debates acalorados sobre "pedofilia" nas redes sociais não ligam para isso, você sim.

Não é à toa que a maioria das vítimas de estupro no Brasil tem menos de 13 anos de idade. Todo o debate público em torno deste tema tem favorecido a impunidade e o alívio de penas dos predadores de crianças. O sucesso das bravatas inflamadas com a palavra "pedofilia" acaba dando a brecha para a carta do distúrbio psiquiátrico nos tribunais e cega muita gente para os riscos da vida real. Quem alerta sobre isso logo é carimbado como "pedófilo" ou "defensor da pedofilia" pelos bravateiros. É a forma de cegar e interditar o debate. Querendo proteger nossas crianças, a sociedade tem dado voz justamente a quem provoca o resultado oposto. Gritaria e superficialidade nunca tiveram outro desfecho.

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