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“Democracia em Vertigem” merece um Oscar?
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As redes sociais pegaram fogo com o anúncio de que "Democracia em Vertigem", de Petra Costa, foi indicado ao Oscar de melhor documentário. Eu, particularmente, gostei bastante do filme. É raro que as elites brasileiras, principalmente os herdeiros que se vêem como revolucionários, abram o peito e digam exatamente como pensam. Foi uma oportunidade única.

Quando vivi em Angola, tive a oportunidade de desfrutar da companhia de vários integrantes de uma elite econômica extremamente privilegiada e blindada das consequências de seus atos na vida adulta. É interessante que se dizem socialistas apesar do consumismo, do amor pelas marcas e da necessidade de ostentar luxo pago às custas da miséria dos compatriotas. Mas nenhum herdeiro se considera revolucionário, chamam-se, entre eles inclusive, de "príncipes". É a forma irônica de dizer que ficaram ricos sem esforço.

Os "príncipes" brasileiros preocupam-se em justificar com os próprios méritos os privilégios que têm por mérito genético, ser filhos de quem são. Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro perdoa tudo, menos o sucesso. Talvez explique. Em vez de desfrutar do sucesso e partir dele para deixar uma marca no mundo, é um fardo que deve ser justificado com merecimento, o que é impossível. Restam as alternativas da mentira e do autoengano.

Nós, brasileiros, conhecemos particularidades da nossa elite. Há uma casta de endinheirados que renega o legado da própria família, mas não deixa de desfrutar dele. O retrato dos pais "revolucionários" é particularmente interessante. No documentário, filhos de empreiteiros poderosos, que hoje sabe-se terem mantido estreitas e suspeitas ligações com os governos por gerações, são considerados tão revolucionários e perseguidos como estudantes pobres ou trabalhadores comuns que se meteram em manifestações políticas na época.

São famílias que, por gerações, se esforçam para que seus descendentes sejam privilegiados. Parece um tanto de ingratidão renegar esse fato e continuar desfrutando dos privilégios. Também é fazer pouco da luta alheia fingir que qualquer batalha nessa condição é igual à de quem não tem dinheiro, prestígio e poder. A cara da elite brasileira.

Difícil que fora do Brasil exista uma massa crítica de intelectuais que conheçam tão profundamente nossa dinâmica social a ponto de perceber essa particularidade. Temos a romantização da luta política daqueles que, durante todo o período, foram protegidos pelas próprias famílias, sabe-se lá a que preço. Os que não foram também aparecem distorcidos, devido à decisão de retirar das fotos de época armas utilizadas na luta contra a ditadura militar. Não entendi o motivo, soou como um julgamento da realidade daquelas pessoas ou tentativa de vitimizar quem não queria posar de vítima.

Não creio que nada disso seja levado em conta fora da nossa dinâmica tão particular de sociedade brasileira e, ainda mais, em Hollywood. O palco ali não é do Brasil, é de uma insatisfação da classe artística com Donald Trump, cuja existência e sucesso tentam entender. É sob esse prisma que o filme funciona nos Estados Unidos, uma leitura da vida deles, desprezando as nossas diferenças e focando nas semelhanças. A proximidade entre Trump e Bolsonaro sela o raciocínio.

Não tenha a ilusão de que a elite cultural e do show business norte-americano vai se preocupar com a nossa história, nossa dinâmica social, polarização política ou fatos ocorridos no Brasil. Imagino que se preocupem tanto com isso quanto você se preocupa em entender os debates políticos na Índia. Saber que existe basta.

Nem a relação conflituosa há décadas com o Irã é suficiente para fazer com que o povo dos Estados Unidos se preocupe com as particularidades daquele país. Este ano, foi feita uma pesquisa com norte-americanos que já eram eleitores em 1995, época da guerra Irã-Iraque, onde o país deles teve papel importantíssimo. Pediram uma única coisa: mostrar no mapa onde fica o Irã. Três em cada quatro pessoas erraram. Avalie o tanto que se importam com a correta versão de fatos da política brasileira.

"Democracia em Vertigem", com muita educação, exclui da possibilidade de qualquer vivência civilizada ou raciocínio político coerente quem se opôs a Dilma Rousseff ou quem foi a favor do impeachment. Foi uma provocação inteligente de quem sabe como agem os sectários do pólo oposto. O tema acaba ficando em segundo lugar quando a discussão começa a ser permeada pelos palavrões, ataques pessoais e ameaças que têm caracterizado o debate político dos brucutus brasileiros.

O desprezo pelo conhecimento, a boca de latrina e a moral de chiqueiro são um combo que não tem como dar certo. Fora os ressentidos, que celebram quando algo é tirado de alguém que invejam, não há como indivíduos com esse tipo de comportamento funcionarem para melhorar uma sociedade. Não demora para que favoreçam seus oponentes simplesmente porque têm orgulho de celebrar a própria vulgaridade e falta de valores.

As críticas agressivas, carregadas de palavrões e em tom de bravata, favorecem muito a popularidade de "Democracia em Vertigem". Se um grupo que se comporta como escória social e moral fica incomodado com algo, o observador distante conclui automaticamente que está diante de algo fenomenal.

É lícito dizer que "Democracia em Vertigem" conta fatos e processos políticos ouvindo apenas um lado. Do outro lado, temos uma minoria radical que todos os dias levanta com sede de linchamentos públicos dentro do próprio espectro político, defende a glamurização da vulgaridade e despreza o conhecimento. Essa minoria é apoiada pelo silêncio conivente de uma maioria. Difícil que sejam ouvidos, até porque provavelmente não querem, desejam apenas se impor.

De minha parte, fico orgulhosa que uma produção brasileira seja indicada ao Oscar, da mesma forma que fiquei todas as outras vezes em que isso aconteceu. É uma vitrine importantíssima para a produção cultural do nosso país e uma conquista que pode abrir as portas para o trabalho de muita gente legal, inclusive aqueles que não são herdeiros das famílias mais importantes do país. O patriotismo é colocado à prova quando nossas opiniões pessoais são confrontadas com as conquistas do nosso país. Minha opção é sempre pelo Brasil.

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