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Adoção
| Foto: Unsplash

Hoje, dia 25 de maio, é o Dia Nacional da Adoção. Ainda temos um problema de não enxergar crianças como cidadãos e sujeitos de direitos, mas como propriedade. A depender do caso é dos pais ou do Estado, fica ao gosto do freguês. Nos últimos 30 anos, evoluímos muito nas leis de adoção. Mas a consequência delas depende de serem aplicadas no melhor interesse da criança.

A expressão "melhor interesse da criança" parece cristalina, mas é ardilosa na nossa mente. Existe o perigo de considerar que as causas mais importantes para mim são aquelas mais importantes na vida de uma criança. No caso dos palpiteiros, a consequência é bate-boca. Mas há casos em que tomadores de decisão enxergam o mundo pelo prisma da causa que defendem.

Na cidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, uma mulher foi impedida de prosseguir com o processo de adoção por ser considerada inapta a adotar crianças homossexuais. O curioso é que os únicos relacionamentos amorosos estáveis e duradouros que ela já teve foram com mulheres. Mais curioso ainda é compreender como este se tornou o tema central do processo.

Toda pessoa que deseja adotar precisa ter um laudo psicossocial aprovando sua condição para isso. A psicóloga e a assistente social que atenderam o caso deixaram bem claro que não se tratava de um laudo feito de acordo com as regulamentações técnicas e éticas de suas profissões. Isso porque a elaboração foi demandada no momento de bandeira preta da COVID, sem atendimentos presenciais. Tratava-se de um relatório multiprofissional tentando suprir uma demanda que não se poderia suprir naquela situação.

A mulher que pretende adotar tem 39 anos, formação superior com especialização e está no terceiro semestre de outra faculdade. No dia da entrevista, ela informou que já havia se infectado com COVID duas vezes. Teve uma relação difícil e distante com o pai, alcoólatra, já morto. Agora vive com a mãe em casa própria, as duas têm emprego fixo com salário razoável e ela ainda faz extras que garantem uma renda razoável. O terreno onde moram tem casas de vários outros familiares.

Ela e a irmã descobriram que o pai havia casado de novo, em outra cidade, e tinha mais 3 filhas só depois da morte dele. Todas as irmãs hoje se dão bem e conversam pelas redes sociais. Ela começou a trabalhar com 15 anos, como garçonete. Depois foi vendedora em uma loja durante 10 anos, mudou-se para outra loja e então trabalhou num posto de gasolina. Aos 30, começou a frequentar a igreja, cursou Teologia e hoje é missionária.

E é aí que um vídeo na internet com a missionária candidata à adoção e um pastor vira o centro do debate. Ela diz que a homossexualidade é uma construção social. Meninos seriam homossexuais, por exemplo, por conviver só com mulheres. Essa desconexão com a realidade ganhou uma relevância bem maior do que diversos outros fatos que têm impacto direto no interesse da criança.

A candidata a mãe diz que quer uma menina porque não tem um exemplo masculino em casa. Daí deixa claro que "deseja adotar uma menina de um a cinco anos de idade, cor branca, amarela ou parda, dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo ou Rio de Janeiro. Aceita com doença tratável." Por que só desses Estados e não dos outros? Por que de um a 5 anos e não um bebê e não uma de 6 anos? Por que não uma criança negra? Não se foi além.

O empreendimento da adoção parece ser grande. Ela quer quatro meninas. Por enquanto, como não é mãe, ficará só com a primeira. Diz ter uma rede de apoio familiar, mas os familiares não foram entrevistados. Falou que já sonha com as meninas, no plural, em sua casa. Seria interessante entender melhor. Mas não, se pergunta o que ela pensa da adoção por casais homossexuais. Ela diz que é louvável, mas não quer para si.

Há 8 anos sem um relacionamento afetivo, ela diz querer um relacionamento heterossexual para formar uma família. Só se relacionou com homens de forma breve, quando muito nova. Também disse que nunca pensou em engravidar na vida, sempre quis adotar. Por isso, agora que encontrou um novo sentido na igreja, quer formar a família com um companheiro e quatro meninas adotadas.

Pense no melhor interesse da criança. Uma mulher de 40 anos passa por uma fase de mudanças profundas em todas estruturas da vida. O plano dela é, após relacionamentos homossexuais e um período longo vivendo com a mãe, encontrar um marido. Ele viveria com a sogra mais quatro crianças e isso daria certo. Parece idealizado demais, mas ninguém viu problema. O problema é a eventualidade de não saber conviver com uma menina homossexual.

Não há regras claras para o que psicólogos e assistentes sociais devem levar em conta na avaliação psicossocial dos candidatos à adoção. Isso não é desleixo, seria impossível prever todas as situações dada a complexidade do ser humano. Mas também há o risco de que o olhar fique preso só naquilo que se quer ver, no caso, a ignorância sobre sexualidade.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem algumas orientações para o que deve constar de toda avaliação psicossocial de adotantes. Há um rol de questões sob o título "Preparação para Adoção" com temas que parecem centrais para definir se o melhor interesse da criança será respeitado:
- metodologia/ procedimentos das atividades de preparação para a adoção internacional
- qualidade da participação dos pretendentes em cursos de preparação para a adoção e/ou grupos de estudos e/ou grupos de apoio
- modelos educativos pretendidos/imaginados
- potencial para lidar com situações de “stress”, agressividade, comportamentos regressivos, tolerância à frustração
- potencial para estabelecer uma relação de confiança que possibilite paulatina construção de vínculos familiares
- postura, conceitos e sentimentos em relação à revelação da adoção
- postura, conceitos e sentimentos em relação à história de vida das crianças/adolescentes
- postura, conceitos e sentimentos em relação ao nome da criança/adolescente
- significado interno de adotar criança de outra etnia/características somáticas, ou de manter a preferência pela mesma etnia/características somáticas do(s) pretendente(s)
- abertura e maturidade para lidar com as diferenças somáticas, lingüísticas, culturais, e com o contexto social
- motivação e preparo para a adoção de grupos de irmãos
- motivação e preparo para a adoção de crianças/adolescentes com o perfil indicado no pedido de habilitação, em especial quando há alteração nas características inicialmente indicadas
- disponibilidade para buscar apoio, orientação e/ou ajuda especializada, inclusive após a adoção

A maioria desses temas sequer foi discutida no caso em questão. Segundo dissertação de mestrado de Rosilene Ribeiro de Oliveira no Instituto de Psicologia da USP, há um tema central em todas as avaliações: a criança idealizada. Não é por força de lei, é com base na experiência dos profissionais que ela entrevistou. Há pessoas que buscam adotar crianças esperando uma cura de todos os males ou uma experiência idílica e isso não vai existir. Vão ter uma família como as outras e você sabe que, para ser bom, dá muito trabalho.

O Ministério Público não observou nada disso. Recomendou à juíza que negasse a habilitação para a adoção porque é impossível saber se a criança adotada será heterossexual ou homossexual. Caso seja homossexual, a mãe não estaria preparada para lidar com ela. Fiquei realmente curiosa. Caso a criança fosse heterossexual, a mãe estaria preparada para essa adoção neste momento?

A juíza acompanhou o entendimento dizendo que a mãe não está habilitada para a adoção neste momento. Esclareceu que a religiosidade dela e seu pensamento sobre homossexualidade não impedem a adoção. Mas levou em conta a questão da criança idealizada. Temos uma mulher de 40 anos com a crença de que basta criar do jeito certo para a criança ser como você quer. No caso, heterossexual. E se não for? Segundo a juíza, não ficou claro como esse conflito seria administrado.

Imagine se a mãe não tivesse falado nada do que pensa sobre homossexualidade. Nosso sistema jurídico seria capaz de preservar o melhor interesse da criança? Ou só consegue se o que está em jogo é a causa que toca o coração de quem faz parte dele? Querer um filho é uma coisa, ser mãe é outra. O melhor interesse da criança é ter uma mãe e, de preferência, não ser instrumentalizada por uma mulher adulta que quer encontrar o sentido da própria existência tendo um filho para chamar de seu.

Pessoas podem e até devem ter causas. O problema aqui é que as causas têm pessoas. O centro da discussão de uma adoção é o melhor interesse da criança em todos os seus desdobramentos. Por uma questão de simpatia, optou-se por olhar somente um detalhe: a sexualidade da mãe e as opiniões dela sobre a sexualidade alheia. Um olhar mais voltado à criança não teria mudado esta sentença. Mas teria mudado quantas outras?

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