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É possível fazer política ignorando o elemento humano?
| Foto: Lineu Filho/Tribuna do Paraná

Vimos, no final de semana, que a sociedade civil brasileira aprendeu a ir às ruas manifestar pacificamente suas reclamações e consegue, inclusive, conviver com manifestações opostas. Somos bons de iniciativa e ruins de "terminativa". Há praticamente 7 anos o povo não sai das ruas no Brasil e, ainda assim, precisamos reclamar insistentemente.

Há nos protestos uma mistura entre indignação justa, cidadania e deslumbramento pelo espetáculo. A política virou um grande espetáculo, como são o futebol, as novelas e o Big Brother Brasil, inclusive com a mesma qualidade. Temos as estrelas e uma multidão que torce, dá o sangue, acompanha cada detalhe, vive plenamente todas as emoções.

Seria sensacional ter tanta atenção para a política se tivéssemos a consciência de que nossas decisões e posicionamentos têm consequência direta e real nas nossas vidas cotidianas e no futuro das nossas famílias. Não temos.

O elemento humano é tratado, por boa parte da militância mais aguerrida, não como o centro mas como entrave à política. Talvez seja aí o berço das demandas impossíveis de atender, a incompatibilidade com a vida humana. Temos, todos nós, ideias muito concretas sobre coisas que podem ser melhoradas no dia-a-dia, mas elas parecem pequenas e distantes do que seriam as grandes causas.

Quando vemos, sobretudo nas redes sociais, os "inteligentinhos" - famosos por realmente acreditarem que são mais inteligentes que os demais e não terem pudor de ditar regras para a humanidade - falando sobre desigualdade, racismo e machismo, somos inevitavelmente inadequados. Estaremos diante de uma tropa que não respeita a história pessoal de ninguém e mede o valor público de alguém pelo erro que aponta nos outros, ainda que seja mentira ou distorção.

Os "inteligentinhos" são os que dão aula de racismo para quem realmente sofre com racismo e saem xingando todos os demais de racistas porque não usaram a hashtag correta. São os que dão aula de igualdade de gênero a qualquer mulher que abrir a boca para falar de qualquer coisa se ela não votar no candidato que ele prefere. Não querem resolver, gostam mesmo é de reclamar.

Resolver chagas sociais envolve entender a alma humana, ouvir quem sofre, ser capaz de empatia e de entender que todos sofremos e fazemos sofrer pelos mais variados motivos. Dentro das teorias de perfeição, de seres humanos sem preconceitos e sem falhas, não há espaço para pessoas. As pessoas falham, desconfiam de quem é diferente delas, erram. Mudanças acontecem nesse contexto, não num livrinho de regras que descarta os que não estão à altura da perfeição.

Seguiremos nas ruas pelos 20 centavos, contra o racismo, contra um governante, contra a desigualdade e até a favor de político, o que mostra nossa imaturidade cidadã. Talvez tenhamos sido mantidos desde sempre na ignorância política de propósito, para que o poder fique sempre nas mãos dos mesmos que, vez ou outra, marketeiam algum dos seus mais rebeldes como novidade. Talvez seja só o descuido tradicional do político brasileiro com o povo.

Quem se envolve com política no Brasil gosta de pensar que as pautas são todas muito racionais, nada relacionadas com as emoções humanas. Gostamos de pensar que as pessoas estão nas ruas indignadas com a corrupção, com determinadas decisões de um governante, com um fato que choca o país, que decidem racionalmente se unir e agir. Não é bem assim.

As pessoas vão às ruas quando a vida que têm em casa está tão insuportável que só lhes resta demonstrar a revolta. Povo na rua é poder de destruição, jamais de construção. Enquanto há conforto material e psicológico em casa, as pessoas preferem a vida familiar.

Semana após semana, no meio da pandemia mais grave que o mundo já viu, vemos brasileiros que sentem essa necessidade de ir às ruas fazer uma manifestação política. É uma decisão de custo altíssimo e muitos já pagaram. Qualquer que seja a ideologia da manifestação ou o entendimento da pessoa sobre a pandemia, há uma certeza: o vírus estará lá.

Ouvi argumentos de pessoas que foram a manifestações nas últimas semanas. É uma decisão pessoal e familiar que não faria sentido para mim, embora compreenda o que dizem. Também vi pessoas que organizaram diversas passeatas na vida, ativistas conhecidos, desistindo de participar por ter alguém infectado na família ou depois de apelo familiar. Esses eu apóio integralmente.

No momento em que temos semanas seguidas de passeatas durante uma pandemia, precisamos pensar seriamente nas nossas escolhas. Democracia não é só votar, é quando as autoridades sabem ouvir "a voz rouca das ruas", como dizia Ulysses Guimarães. Se o Brasil está sistematicamente nas ruas desde 2013, estamos falando para ninguém ouvir de verdade.

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