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Racismo
| Foto: Pixabay

Muitas pessoas implicam com o conceito de "racismo estrutural", o que não decorre do conceito em si, mas da jihad em torno dele travada pelos monopolistas da virtude. Convido você a ver a questão por outro prisma. O que acontece quando progressistas antirracistas lêem um texto de um intelectual negro que vai contra as convicções da esquerda? Um enxame de brancos desconsidera a história, a trajetória e a vida dele e inicia um movimento catártico de ofensa em massa que lembra muito o espírito das piadas de preto dos show de humor dos anos 80.

Você até pode argumentar que fariam igual se fosse um intelectual branco. Na teoria, é um argumento válido, mas na realidade não. Trago a vocês um caso real em que o parque de areia antialérgica do antirracismo virtual atacou com estigmas racistas o negro que conseguiu a única vitória real para o movimento negro desde as cotas.

Aqui, deixemos de lado a opinião sobre cotas. Muitos divergem e é lícito divergir. Ocorre que os linchadores são a favor das cotas, mas descobriram que o intelectual negro faz parte do Livres, um movimento de liberais, portanto não é de esquerda. Iniciaram então a repetir todos aqueles estigmas que a gente ouvia no passado e atacar não apenas o texto, mas a reputação de quem escreveu. Não se confronta a ideia, se debocha do indivíduo. Seria racismo? Vamos avaliar pelas comparações. Acompanhe o raciocínio.

Irapuã Santana é doutor em direito, escreve artigos para vários jornais, tem convicções políticas liberais e é o advogado da Educafro. Nessa função, ele redigiu a consulta feita ao TSE pela deputada Benedita da Silva que levou ao único avanço real para os negros no Brasil desde as cotas, as cotas de vagas e financiamento eleitoral. Você pode ser contra ou a favor disso. Só não podemos negar que, fora isso, o que temos visto nos últimos anos é patrulhamento de linguagem e lacração em rede social. Nada de ação na vida real.

Apesar de terem comemorado as cotas, os progressistas invizibilizaram Irapuã Santana na conquista, já que a prioridade deles é ideológica, não inclusiva. Como Benedita da Silva e a Educafro são de esquerda, foram amplamente comemoradas. O autor da tese, que já foi assessor do ministro Luiz Fux, foi reconhecido no meio jurídico pelo feito. Infelizmente, o lugar de fala dos negros sobre racismo é aqueles em que os progressistas mandam ele se enfiar.

Irapuã Santana fez um artigo na Folha de São Paulo com o título: "O capitalismo pode ser antirracista". O volume de lacradores que o esculhambaram nas redes levou o artigo a ser o mais lido do dia. O mais interessante, no entanto, é como confrontam o autor, repetindo exatamente as mesmas atitudes que apontam nos outros como racistas. Coloco abaixo alguns dos comentários ao texto e peço que você faça o seguinte raciocínio: "Se o Danilo Gentilli usasse essa estrutura argumentativa com um intelectual negro de esquerda, o que os progressistas diriam?"

Estamos falando de uma mulher branca, militante progressista, muito preocupada com inclusão e diversidade. Na hora em que se depara com um intelectual negro que pensa diferente do que ela aprendeu, sente-se no direito de ignorar a história e a biografia dele, tentar rebaixá-lo intelectualmente e, cereja do bolo, dar aula de racismo a um negro. Apesar de repetir o vocabulário antirracista, é uma pessoa cujas ações são racistas. Isso não é proposital, é o que os progressistas chamam de "racismo estrutural".

Desafio você a procurar um artigo da Folha de São Paulo falando de capitalismo e diversidade escrito por um homem branco. Não encontrará esse nível de cobrança porque as pessoas, ainda que discordem deles, jamais imaginam ter o poder de "colocá-los no seu devido lugar", um resquício cultural que passa despercebido. No máximo haverá questionamentos sobre lugar de fala ou xingamentos genéricos.

Também faço aqui uma outra observação, a do machismo estrutural. Isso pode não ter passado pela sua cabeça, mas eu sempre imagino qual seria a reação progressista caso fosse o Danilo Gentilli fazendo o mesmo deboche com alguém de esquerda. Nessa óptica, por que destacar Elena Landau como líder de um movimento do qual ela não é líder? Relacionar a biografia dela a serviços de cuidados com criança como forma de diminuí-la não seria duplamente machista?

Elena Landau é parte importante da história atual do Brasil, foi diretora de privatizações do BNDES e diretora do Conselho da Eletrobrás, é advogada e economista. Há diversos outros homens com currículos brilhantes e vida pública no Livres. Por que não foram eles os relacionados ao texto e ridicularizados? Porque homens brancos são confrontados, ninguém se acha no direito de colocá-los no "devido lugar". E há ainda um ponto interessante, a metáfora da creche, fruto de um machismo tão arraigado quanto silencioso. Cuidar de crianças é coisa de mulher e menor, então se faz a comparação para obter o ridículo.

Evidentemente que uma militante progressista jamais agiria de forma machista deliberadamente. Não se trata do confronto ou crítica a uma mulher, mas do uso nesse confronto de estigmas de um mundo que já não faz mais sentido. Esses estigmas são tratar o trabalho de uma cuidadora de crianças como inferior e desmerecer as qualidades intelectuais de uma mulher como arma de debate. Isso aconteceu, infelizmente.

Pessoas não são o que pregam, são o que toleram. As mesmas pessoas que falam em sororidade e antirracismo o dia inteiro toleram esses comportamentos diariamente. Não toleram, no entanto, pecados mortais como usar o pronome errado ou uma palavra que entrou para o index, como criado-mudo. Criamos o abrigo perfeito para o racismo estrutural e o machismo estrutural: a fantasia de progressista-antirracista-feminista.

Fazemos o mal que não queremos e não fazemos o bem que pretendíamos. Somos humanos, erramos e acertamos. Colocar-se como régua moral da humanidade nunca dará certo porque somos todos falhos. A militância que se contenta com promover conteúdos nas redes e gritar palavras de ordem precisa começar a se importar com o impacto dessas ações na vida das pessoas.

É óbvio que uma pessoa de direita pensa que essa corrente de pensamento tem o condão de resolver aflições humanas. Uma pessoa de esquerda também pensa que as propostas esquerdistas lhe entregarão um mundo ideal. Vale o mesmo para os de centro e qualquer outro recorte ideológico que se deseje fazer. À frente de tudo isso precisa estar a noção de que a dignidade é inerente à condição humana e inegociável.

Se alguém pensa que sua corrente ideológica é a que mais favorece, por exemplo, os negros, não ganha autoridade para obrigar todos os negros a abrir mão da dignidade e aderir à força a uma linha de pensamento. Sempre há tentativas de convencimento, o que é natural e necessário no debate político, falo de outro fenômeno. A cobrança para que mulheres e negros sejam obrigatoriamente progressistas só é implacável porque estruturalmente a sociedade considera que pode mandar em mulheres e negros. Isso não será vencido com hashtag.

Esses detalhes todos que apontei aqui são muito diferentes daquilo que normalmente pensamos como racistas, como ku klux klan ou neonazistas. Eles sabem quem odeiam e te dizem os motivos. Nesse caso, há pessoas que até militam contra o racismo por realmente entender que é absurdo. No entanto, inconscientemente repetem esses comportamentos. Todos fazemos isso em algum momento e todos temos a possibilidade e o direito de evoluir. Embora alguns não acreditem, vai aqui uma verdade incômoda: nem os canceladores são perfeitos.

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