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Eleições municipais e 2022: o Brasil quer uma liderança de paz ou de guerra?
| Foto: Steve Buissinne/Pixabay

Mitagem e lacração monopolizaram a política brasileira até esse pessoal todo precisar trabalhar. Como a política vai além de valentias de rede social, há muitos que decepcionaram eleitores. As eleições municipais deixam duas coisas claras: há espaço para a construção de uma candidatura moderada de centro e os partidos não são determinantes para os prefeitos e vereadores.

Comecemos pela última parte, a questão partidária. Há muito tempo sou defensora da possibilidade de candidaturas independentes, fora dos partidos. Em diversos países é comum, até porque está previsto no artigo 23 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. A parte legal cabe ao STF decidir e já há uma ação lá. Nas eleições municipais temos uma dose de realidade a discutir.

Existe uma discussão sobre o efeito de candidaturas independentes na política nacional, dado que temos uma democracia muito jovem, campeã mundial de impeachment em tempos de paz e adoramos populistas. No plano municipal, essa questão tem de ser abordada de forma diferente, já que as composições não refletem ideologia e muitas vezes os candidatos entram em um partido simplesmente porque precisam ter uma legenda.

Suponha que um candidato a vereador já seja um líder em sua área de atuação, qualquer que seja ela. Alguém que defende questões muito pontuais como a revitalização de um bairro, cuidado com uma determinada reserva ambiental ou mudança de horários de creches precisaria necessariamente se filiar a um partido? É possível argumentar que isso refletiria na formação de bancadas nas Câmaras Municipais. Só que a realidade partidária nos municípios nem sempre segue ideologias.

Peguemos como exemplo um caso concreto, Filippi, que foi eleito pela 4a vez prefeito de Diadema, na grande São Paulo e é visto como a volta do PT ao governo local. A coligação que ele formou no segundo turno é um desafio à lógica da jihad entre esquerda e direita. Teve o apoio de partidos que, no plano nacional, são apoiadores de Jair Bolsonaro e dos tucanos.

O PT elegeu-se em Diadema com o apoio de todos os que participaram do que os petistas chamam de "o golpe de 2016", o impeachment de Dilma Rousseff. Começa pelo Solidariedade, de Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força. Teve o PL, que faz parte de apoio da base de Bolsonaro e ao qual o presidente já foi filiado. Inclui ainda o Avante, antigo PT do B, dissidente do PTB de Roberto Jefferson, que apoiou José Serra e Aécio Neves nas últimas eleições municipais. O último apoiador é o Patriota, legenda pela qual concorreram os integrantes do MBL na capital paulista e à qual Jair Bolsonaro quase se filiou antes de optar pelo PSL.

Nas capitais e metrópoles existe uma identidade maior entre a política local e as questões ideológicas nacionais. Mas, na maioria das cidades menores, a questão é muito diferente. Os partidos são muito mais vinculados aos laços sociais e questões locais do que à ideologia nacional de seus grandes líderes. Santana do Itararé, cidade de 5 mil habitantes do Paraná, tem um prefeito do PT e um vice do PSL. Formaram a única chapa que se apresentou às eleições.

Houve quem interpretasse que, no caso específico, as duas legendas mais antagônicas da política nacional abriram mão de suas convicções e apostaram no pragmatismo. Discordo. É um cenário que se repete sistematicamente porque a lógica partidária municipal é muito diferente do debate partidário nacional. Uma cidade pequena não tem diretório de todos os partidos e a existência dos diretórios é mais ligada a laços sociais que a ideologia. Para concorrer, pessoas interessadas apenas na realidade local filiam-se onde é possível. Quando não têm pretensões nacionais, a realidade local é tão conhecida de todos que o partido vira um mero detalhe.

O prefeito de Santana do Itararé, José de Jesus Izac, é comerciante e filiado ao PT. O vice, Joaquim do Venerando, é agricultor e filiado ao PSL. A coligação que elegeu os dois teve também PDT, PSB, Podemos e MDB. Nenhuma outra candidatura se apresentou. A chapa teve, consequentemente, 100% dos votos válidos, já que só era possível votar neles. Entre quem escolheu não votar neles está 41,49% do eleitorado, a soma entre abstenções, brancos e nulos.

No município de Itapirapuã Paulista, no Vale do Ribeira, em São Paulo, o PSL proibiu que o policial Agnaldo Domingues da Cruz se candidatasse a vice da petista Sirlene de Almeida Camargo, atual vice-prefeita. Eleita em 2016 na chapa do petista João Batista de Almeida, mas conseguiu atrair para a chapa de 2020, o DEM e o PSL, que eram oposição. Ela trocou de vice e escolheu o também petista Fernando da Farmácia. A chapa, apoiada também por MDB, PDT e PSB, perdeu para a chapa pura do PC do B, encabeçada pelo empresário Cesar Construvale que, logicamente, é capitalista. Dezenas de casos semelhantes se repetem pelo Brasil.

Hoje, bolsonaristas comemoram nas redes sociais o fim do petismo, já que o PT não elegeu prefeitos em capitais pela primeira vez. A esquerda comemora a derrota absoluta do bolsonarismo, já que o PSL amargou um resultado pífio e, embora não seja mais o partido do presidente, reúne as principais estrelas regionais do bolsonarismo. Ambos estão errados. Nem o petismo nem o bolsonarismo estão mortos e voltarão quando o debate for nacional.

Vivemos a situação mais dramática da nossa geração, a pandemia de coronavírus. Ainda não sabemos como ela mudou nossa forma de pensar e escolher, mas é seguro que mudou. As incoerências em colocar a população como prioridade brotam em todos os espectros políticos. Infelizmente não houve no Brasil uma união por Saúde Pública, em prol do povo, deixando as diferenças ideológicas de lado. Nossas dores, medos e incertezas foram convertidos em joguete político, que se tornou emocionante nas redes sociais.

A postura pessoal do presidente Jair Bolsonaro e sua insistência em fugir da responsabilidade de liderar uma coalizão nacional em nome da Saúde Pública prejudicam quem militou com ele nas eleições de 2018. Do outro lado, o maior vitorioso da esquerda nas eleições municipais, Guilherme Boulos, que fez o PSOL tomar o lugar do PT em São Paulo, age exatamente como Donald Trump. Soube que havia tido contato com uma pessoa infectada e continuou os compromissos públicos até que viesse o resultado do exame. Bruno Covas e João Doria, representantes de alas bem diversas do PSDB, anunciaram apenas após as eleições medidas mais rigorosas de combate à pandemia e fizeram uma comemoração da vitória sem medidas de segurança.

Qualquer que seja a convicção política do cidadão, ele viu tanto o seu pólo ideológico quanto o pólo oposto colocando interesses políticos acima do drama humano que todos vivemos. Em eleições municipais, que já são mais ligadas a problemas reais que a questões ideológicas, natural que a opção da população fosse pelo que julga ser mais seguro. O voto foi naquilo que se conhece, ainda que não se aprove na totalidade, e as abstenções foram eloquentes.

Da mesma forma que todo cidadão percebeu a rejeição a discursos muito radicais, os políticos também perceberam. Como vivemos a apoteose da superficialidade, ainda é possível fazer um discurso de moderado mantendo posições radicais. A esquerda capitaneada por Guilherme Boulos aprendeu a usar as redes sociais como a direita usou nas eleições nacionais. A lógica é escolher um inimigo por dia, a ser atacado em massa por questões pontuais, sempre dentro do mesmo espectro ideológico, não no oposto. Sacrificar ovelhas do próprio rebanho espanta moderados e consolida radicais. Os ataques ao pólo oposto permanecem, obviamente, mas com menos empenho e virulência que os ataques dentro do próprio espectro político.

Guilherme Boulos conquistou o apoio dos que foram trucidados pela máquina de propaganda petista nas eleições de 2018 e tornou o PSOL, partido a que se associou, um fenômeno nacional de crescimento nas eleições municipais. A elite intelectual das grandes metrópoles viu na candidatura a tão falada "frente ampla", ainda que só com integrantes de esquerda. Não há incômodo com linchamentos virtuais, misoginia e a virulência dos apoiadores. Novamente, há uma tentativa de dissociar o líder político das ações de seus liderados, mesmo quando ele cala convenientemente delas.

Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro traz sua militância mais radical a um novo clima desde que o centrão entrou para o governo. Continua com estímulos às ideias de conspiração, inimigo comum e necessidade de lutar contra algo, mas suaviza e terceiriza embates públicos e perseguições. Hoje, pela primeira vez, conversou com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, em transmissão que contou até com a participação de José Sarney, maior defensor do Mercosul. Se o lulismo achou uma nova narrativa, o bolsonarismo também trabalhou nisso e ambos continuam com um público fiel e apaixonado.

Há quem julgue como certo um novo embate entre o lulismo e o bolsonarismo nas eleições de 2022. Certamente continuam a ser forças políticas importantes e estarão presentes. Ambas as forças, no entanto, dedicam-se sistematicamente a expurgos dentro da própria base como forma de sedimentar os mais fiéis. Abrem mão de muito capital político que cria espaço para formular uma terceira via.

O PSDB, que já foi uma força de centro, hoje está rachado entre a ala do governador João Dória e os tradicionais tucanos de pedigree. Verdade seja dita, os tucanos de pedigree já haviam fragmentado o partido por erros estratégicos em eleições municipais. Um dos tucanos ancestrais, Eduardo Paes, sagrou-se prefeito do Rio de Janeiro pelo DEM contra Marcelo Crivella. Ex-líder do PSDB na Câmara, o prefeito eleito deixou a legenda quando não conseguiu ser indicado para cargos no Executivo. O mesmo aconteceu, por exemplo, com Gustavo Fruet, Andrea Matarazzo e Walter Feldman.

A Rede Sustentabilidade, de Marina Silva, apoiou a candidatura de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo. Um dos pilares morais do partido, Eduardo Jorge, foi contra. Enxergou um erro estratégico nesse movimento, o de fomentar a polarização e diminuir a possibilidade de uma candidatura moderada e agregadora em 2022. Após as eleições municipais, vê uma abertura da população para uma proposta moderada e agregadora.

Nem os mais experientes conseguem fazer apostas concretas no cenário em que vivemos, um drama de Saúde Pública que desafia a estabilidade emocional de toda a população. De qualquer forma, o recado das urnas está dado. Ainda há muito público para a lacração e a mitagem política, mas a maioria da população prefere alguém que dê conta do recado, conseguindo transpor os discursos para a vida real.

O centro ou os moderados de discurso ainda não têm um nome e uma proposta concreta para 2022. Nisso, lulistas e bolsonaristas saem muito à frente. Mais uma vez se faz o balão de ensaio com o nome de Luciano Huck. Sergio Moro, que tem sérias restrições no centro, parece ter se voltado para uma carreira na iniciativa privada pelo menos por enquanto. O que é mais estratégico para o centro, um nome ou uma coalizão realmente ampla? É uma decisão importante. O espaço existe, resta saber como pode ser ocupado.

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