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Espanha reivindica paternidade do coronavírus. E o debate sobre “vírus chinês”?
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O tempo é um conceito presente em todas as áreas do conhecimento humano, em todos os ramos da ciência, da arte e até da espiritualidade. Há quem diga que o tempo é o senhor da razão. Fato é que tudo tem seu tempo, inclusive a ciência e isso é aprendido num tempo certo, o Ensino Fundamental. Entre as diversas mazelas da nossa sociedade expostas na pandemia, a mais escancarada é a da educação.

Não ficamos surpresos com pessoas que têm dificuldades para compreender por que precisam usar máscaras ou que a máscara na testa e no queixo não ajuda muito. Podemos ficar tristes, mas não ficamos surpresos com o fato de pessoas que não tiveram acesso a educação de qualidade caírem na lábia de charlatães de toda sorte que vendem curas ou prevenções milagrosas e se aproveitam da boa-fé e até do desespero.

Confesso que estou surpresa com a indigência educacional dos nossos diplomados, dos integrantes da nossa elite financeira, cultural e intelectual. É preciso ser muito ignorante para não ter noção dos assuntos sobre os quais se tem condição de opinar e mais ainda para confundir opinião com fantasia. Triste ver diariamente esse festival justo no período em que o público mais precisa de pessoas equilibradas e responsáveis.

Um dos debates mais inflamados e inúteis que vimos nos últimos tempos foi a tal da história do "vírus chinês". Compreendo a utilidade política que tem para Donald Trump, às portas de uma campanha eleitoral em meio ao caos. Com uma experiência de décadas diante dos holofotes e uma habilidade inegável em manobrar adesões utilizando a tática do inimigo comum, criar polêmica em torno da adequação ou não do tema em meio a negociações comerciais foi uma jogada de mestre. Também entendo por que os chineses morderam a isca para bater em Trump, não há nada melhor que o vitimismo para a narrativa do Partido Comunista Chinês. Resta saber por que alguém que não é político embarca nessa.

No Brasil, vários políticos também embarcaram na discussão, só que por motivos diferentes, todos bem compreensíveis como jogo de cena e nenhum deles em legítimo interesse do povo. Houve quem acreditasse que estavam defendendo nossa liberdade de expressão contra o politicamente correto. Político latino-americano que defende mais liberdade para o povo em vez de tirar casquinha da situação é mais difícil de acreditar do que mula-sem-cabeça, mas sempre há aqueles que juram ter visto.

O caso é que dizer "vírus chinês" não poderia ser liberdade de expressão, seria no máximo liberdade de exibir publicamente a deficiência educacional na área de biológicas. Se até hoje não sabemos a origem do HIV e do sarampo, como acreditar que é possível dizer qual a origem do Sars-Cov-2?

O paciente zero do HIV foi apontado num primeiro momento como sendo um comissário de bordo homossexual que adquiriu o vírus em 1980 na África e morreu em 1984 nos Estados Unidos. Depois, descobriu-se que o vírus já circulava no Caribe no final da década de 70. Só que as técnicas de biópsia vão se aprimorando com a evolução tecnológica. Descobriu-se que havia uma amostra mais antiga do vírus, em sangue coletado no Congo em 1976. Mês passado, utilizando tecnolgia de ponta, foi descoberta uma amostra completa do vírus HIV em tecido coletado no Congo dez anos antes, em 1966.

O sarampo, por exemplo, apesar de todo o avanço tecnológico, ninguém ainda é capaz de dizer de onde surgiu e como começou. O mais desolador é que já se descobriu como evitar, a doença foi erradicada no Brasil e voltou porque bobeamos na prevenção. A pandemia de coronavírus piorou a situação e o número de casos se multiplicou por 20 do ano passado para cá. O rastreamento genético do vírus do sarampo mostra que ele tem origem bovina e a dúvida é sobre em qual momento ele passa para os seres humanos. Até o início desde ano, pensava-se que era no séc IX d.C. Mas, estudando com novas tecnologias o pulmão de uma menina que morreu de sarampo em 1912 na Alemanha, foi possível rastrear a origem do vírus até uma peste bovina ocorrida no séc IV a.C., pelo menos 1500 anos antes.

Rastrear as origens de um vírus depende tanto de um conhecimento muito aprofundado de ciência quanto de evoluções da própria ciência e da tecnologia, que são diárias. Saber que este processo é complicado e demorado exige apenas conhecimento bem básico de biologia.

No momento, o "vírus chinês" não é mais chinês, é espanhol. Aliás, para ser correta mesmo, é orgulhosamente catalão. Há um projeto mundial de busca de rastros do vírus no mundo inteiro, algo que acontece toda vez em que há uma epidemia, avalie a quantidade de cientistas empenhados agora que vivemos essa situação digna de ficção científica. A Universidade de Barcelona publicou um artigo informando que encontrou o Sars-Cov-2 em amostras do esgoto de Barcelona coletadas em 12 de março de 2019.

Essa é a data mais antiga encontrada até agora. O estudo prossegue em diversas partes do mundo e pode ser que outra equipe encontre algo anterior a qualquer momento em outro lugar. O primeiro caso anunciado em Barcelona em 25 de fevereiro deste ano. A análise dois grandes centros de tratamento de esgoto da cidade mostrou que a quantidade de vírus encontrada nele é compatível com o nível de pessoas infectadas, quanto mais gente infectada, maior a concentração de vírus. As amostras começaram a concentrar mais vírus a partir de janeiro, portanto muito antes que o primeiro caso fosse detectado pelo sistema de saúde de Barcelona.

O cientista-chefe do estudo, Albert Bosch, suspeita que os primeiros casos da doença tenham sido confundidos com gripe comum. O teste positivo em março do ano passado mostra níveis muito baixos do vírus, ou seja, eram muito poucos doentes. A suspeita dos cientistas é que o mesmo tenha acontecido em várias cidades com as mesmas características de Barcelona, a de receber muita gente de todas as partes do mundo tanto por razões turísticas quanto por razões profissionais.

Depois de todo o barulho entre Estados Unidos, China e seus cheerleaders em torno da expressão "vírus chinês", os espanhóis não têm medo que passem a falar de novo de "gripe espanhola"? No século passado, eles levaram a fama da pandemia que, até onde se sabe, teve origem nos Estados Unidos.

A intenção dos cientistas é criar formas mais eficientes de lidar com a pandemia. Aparentemente, é possível detectar que o vírus está circulando antes mesmo que o primeiro caso chame a atenção no sistema de saúde. Testando o esgoto das cidades podemos rastrear como a contaminação está se movimentando sem que os dados sejam mascarados pela quantidade de casos assintomáticos, que obviamente é incerta. Apesar de ser uma doença transmitida de forma respiratória, a covid-19 pode ser rastreada pelo sistema de esgoto.

Caso essa metodologia realmente se estabeleça, daremos um grande passo na convivência com o vírus. Não importa de onde ele venha ou para onde vá, será possível evitar seus efeitos trágicos antes que a primeira família chore a perda de uma pessoa amada.

Foi em Angola, trabalhando na contenção de uma epidemia viral, que aprendi uma das lições mais importantes da minha vida. Só há dois tipos de liderança: as de pacificação e as de caos. O caso do "vírus chinês" mostra claramente por que precisamos saber a diferença.

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