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O Anel de Integração é composto por 2,5 mil quilômetros de rodovias concedidas.
O Anel de Integração é composto por 2,5 mil quilômetros de rodovias concedidas.| Foto:

A vida imita a arte ou a arte imita a vida? O filme polonês Hejter, que chega ao Brasil pela Netflix com o nome "Rede de Ódio", nos traz reflexões ainda mais profundas sobre essa pergunta clichê e sobre o nosso papel na sociedade da vigilância. Temos realmente consciência das nossas falhas pessoais, das consequências delas e da dinâmica social na era da hiperconexão? Vale a pena dedicar duas horas do final de semana à reflexão.

A história é daquelas sob medida para justificar tudo com uma guerra político-ideológica em que um lado é puro e o outro é demoníaco, empastelando e infantilizando o filme. Felizmente o autor Mateusz Pacewicz gosta mais da história e do público do que de lacração ou mitagem. No enredo dirigido por Jan Komasa não tem bonzinho e todo mundo quer parecer imaculado e incorruptível.

O filme conta a história de um rapaz de família simples que conhece uma família rica e progressista, envolvida com a política, artes e caridade. Ao mesmo tempo em que o ajudam, o humilham e deixam claro que se sentem superiores. Toda a trama gira em torno da mistura explosiva da hipocrisia com o ressentimento, temperada pelas redes sociais.

Tomasz Gienza, o personagem principal, encontra nas redes sociais, nos games e na política suas ferramentas pessoais de vingança contra um sistema que o oprime e permite que gente perversa pose de imaculada. Ele aprende a usar todo o aparato de perfis falsos, games, impulsionamento, vigilância e coleta de dados para conduzir de maneira fria sua vingança. Não é uma vítima, tem prazer com as maldades. O enredo é rodriguiano.

O que deixou o filme particularmente famoso, além dos prêmios internacionais, é uma circunstância macabra: o assassinato mostrado na obra é executado na vida real 3 semanas após o final das filmagens, mas antes do lançamento nas telas.

O filme demorou mais de um ano para ser montado e lançado. Terminado em dezembro de 2018, estreou na Polônia em março deste ano. Logo que as filmagens acabaram, em 13 de janeiro de 2019, o ex-prefeito de Gdańsk, Pawel Adamowicz, foi assassinado durante o maior evento voluntário da Polônia, a Grande Orquestra de Caridade do Natal. Ele era alvo constante de ataques nas redes sociais e o assassino era um homem que participava desses ataques mas também tinha vários outros problemas com criminalidade e de comportamento. Exatamente como no filme.

Mas o melhor de "Rede de Ódio" é a capacidade didática da obra sem cair em glorificação barata de ideologias. É muito útil sobretudo para quem tem filhos, amigos ou parentes que estão muito fanáticos com debates políticos e teorias da conspiração em redes sociais. Para quem não faz parte desse universo, é muito complicado compreender que pessoas inteligentes se deixem levar. Basta ver o filme que se compreende perfeitamente: já temos tecnologia para vigiar, medir e manipular as vulnerabilidades psicológicas e emocionais das pessoas.

Quando se fala em "vazamento de dados por redes sociais", por exemplo, muita gente pensa que são os dados que a gente digita quando se inscreve. No máximo nossa senha, conversas em mensagem privada. É muito além. Os "dados" hoje são coletados de todas as formas, incluindo escutar nossos microfones até quando o celular está desligado e coletar imagens das câmeras o tempo inteiro. Nós autorizamos e as empresas garantem que usarão com ética.

No filme, Tomasz joga dos dois lados, direita e esquerda. O negócio dele não é política, é vingança e poder. E a gente pode acompanhar de forma didática como compra de perfis, automação de hashtags, escuta de ambientes e uso indevido de dados, combinados, têm um impacto devastador na realidade.

O mais assustador é constatar que na Polônia, um país que julgamos tão diferente do nosso, os discursos políticos da direita e da esquerda sejam exatamente os mesmos. E eu não falo de ideologia, falo das mesmas frases feitas, das mesmas hashtags de lacração e mitagem, das mesmas desculpas para hipocrisia. É como se a vida política, de diálogo, composição e evolução, tivesse sido reduzida a gatilhos emocionais que interditam o raciocínio.

Mais interessante ainda é constatar que são beneficiados todos os que vivem de forma diferente da que pregam, inclusive os justiceiros sociais que vivem num cavalo branco imaginário salvando a sociedade dos fascistas e autoritários. Para se justificar no poder, hipócritas precisam dos ressentidos e vice-versa, não são inimigos um do outro. Juntos, são inimigos de todos os que têm princípios e pautam a vida cotidiana por valores e coerência.

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