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Oli London, o YouTubber que se diz transracial
O YouTubber está famoso na mídia após ter declarado que “saiu do armário” e é não binário e coreano.| Foto: Instagram Oli London

A questão da transracialidade veio à tona há alguns anos com uma grande fraude. Uma das principais ativistas do movimento negro dos Estados Unidos e professora universitária de estudos africanos, Rachel Dolezal, ficou famosa quando descobriram que ela não era negra. Era uma história tão inacreditável que mal se debateu a questão da transracialidade, o foco ficou na desonestidade.

Na foto maior, Rachel Dolezal em seus tempos de ativista “negra”. Na foto menor, ela durante a adolescência| Foto: Montagem
Na foto maior, Rachel Dolezal em seus tempos de ativista “negra”. Na foto menor, ela durante a adolescência| Foto: Montagem

Conforme aprendemos nas CPIs e escândalos políticos, uma confusão só fica séria mesmo quando mete a família no meio. Rachel Dolezal foi desmascarada pelos próprios pais, em rede nacional. Durante 12 anos, ela construiu carreira na militância identitária jurando ser filha de um homem negro. Até foto dele ela colocava nas redes sociais.

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Os pais resolveram colocar um ponto final quando a ativista disse estar sendo ameaçada de morte por ser negra. A entrevista em que aparecem com as fotos de adolescência foi bombástica. Rachel Dolezal fez procedimentos estéticos para parecer ter traços muito diferentes daqueles determinados pela herança genética sueca e alemã. Flagrada, disse que nunca mentiu, era "transracial".

A ativista sustentou ser uma negra que nasceu no corpo de uma pessoa branca. Disse sempre ter se visto e se entendido como negra, essa era a sua verdadeira identidade social, não aquilo que a genética determinou. Foi massacrada pela militância identitária e perdeu tanto a presidência da ONG quanto o cargo na universidade.

A alegação de transracialidade foi tratada como piada e desculpa esfarrapada até pela militância identitária. O caso todo foi entendido como mais uma farsante, à semelhança de episódios como o da Grávida de Taubaté ou de Tania Head, a porta-voz das vítimas do 11 de setembro que inventou ser vítima do atentado.

Agora estamos diante de um caso completamente diferente. O cantor britânico de K-Pop Oli London fez um vídeo onde anuncia que vai "sair do armário". Revelou que é sexualmente não binário e coreano. Também revelou a forma como gostaria de ser tratado dali em diante.

Trata-se de uma situação bem diferente, em que não se discute honestidade. Oli London apaixonou-se pela Coreia do Sul quando foi para Seul trabalhar como professor de inglês. Mergulhou na cultura, aprendeu o idioma e gastou mais de R$ 1 milhão em 18 cirurgias plásticas para ficar parecido com Jimin, ídolo do K-Pop.

A discussão ficou ainda mais quente quando o YouTubber foi entrevistado pelo programa Dr. Phil, uma lenda viva da televisão norte-americana. O psicólogo Phil McGraw o aconselhou a procurar outro tipo de tratamento, não investir em cirurgias para mudar aparência física, parar com este processo. Não adiantou. Ele já postou o vídeo com mais uma cirurgia que fez em seguida.

A militância identitária acusa Oli London de apropriação cultural, racismo e transfobia. E é aí que a coisa começa a ficar interessante. Qual a justificativa? A de que mudar seu corpo não te faz parte de um grupo cuja vivência você ignora. É rigorosamente o que Chimamanda Ngozi Adchie disse quando foi taxada de transfóbica pela militância identitária.

O artigo mais duro contra o YouTubber foi escrito pelo vice-reitor e o professor especialista em equidade da Cowan University, na Austrália. Trata-se de uma peça única e talvez insuperável no malabarismo argumentativo. "Em sua essência, as palavras e ações de Oli London são um excelente exemplo de racismo, apropriação cultural e transfobia, representada de uma perspectiva de privilégio considerável. Experiências diversas de trans e de gênero não significam que alguém decide mudar sua aparência para fazer parte de um grupo cujas experiências, comunidade e lutas eles não conseguem entender totalmente", dizem os autores.

"Ao contrário do gênero, a raça se apresenta como traços categorizados (geralmente físicos) que são socialmente construídos e compreendidos. Você não pode herdar seu gênero, isso é interno e algo individual para você - mas você herda a construção social de raça. Também há muito mais na identidade racial de uma pessoa do que a aparência física - é também sobre cultura, comunidade, conexão e até trauma", diz o artigo. Mas a militância identitária não defende que existe uma construção social do gênero também? Fiquei confusa aqui.

Não fui só eu, os autores do texto também. Faz parte do mesmo artigo o trecho que diz exatamente o contrário: "O binário de gênero que passamos a pensar como de costume - masculino e feminino - já foi imposto às pessoas, culturas e países por meio da colonização. Entendimentos rígidos de gênero são impostos a culturas onde a fluidez de gênero era anteriormente mais aceita".

Eu não tenho dúvidas de que transexualidade existe e transracialidade não existe. Meu questionamento é sobre a pobreza de argumentos da militância identitária, que cria precedentes para situações cada vez mais bizarras. Tratar ideologia ou crença como se fossem conhecimento ou ciência não dá certo. Estamos ignorando dores e sonhos humanos para valorizar vaidade e arrogância.

A compreensão de forma humana da transexualidade é muito prejudicada pelo tanto de argumentação rasteira que se empurra para o debate. Qualquer pergunta pode fazer alguém ser taxado de transfóbico, não depende da pergunta, depende de quem perguntou. É realmente uma questão complexa, dificílima de entender para as pessoas que não vivem a situação.

Deixo uma pergunta: a Roberta Close é homem? Minha bisavó, muito católica e pouco estudada, garantia tratar-se de um fenômeno único na humanidade. Até ela, que mandava às favas quem implicava com seus inúmeros preconceitos, reconhecia haver ali uma questão verdadeira que merece olhar humano. Foi convencida disso pelo programa da Hebe.

No caso do YouTubber também há uma questão genuína, um desajuste social e dores da alma que ele tenta curar com sucessivas e caríssimas cirurgias plásticas. E aqui chegamos a um ponto que tem sido questionado muito nos últimos tempos: os limites do abuso médico. A pessoa é operada 18 vezes dizendo que quer "virar coreana" e o médico consente sucessivamente?

Eu acredito que Oli London tem a convicção de que transformar o próprio corpo para parecer coreano trará felicidade à existência dele. O caso é que ele não está ficando parecido com um coreano por isso, o resultado das cirurgias é questionável. Mas ele está imerso na cultura coreana e pode tenta conseguir a cidadania, o que seria um plot twist interessante, ele viraria realmente coreano.

Eu conheço e você deve conhecer também pessoas que mudaram de país e apaixonaram-se por outra cultura. Viram mais tradicionais e entendidas do assunto do que os nascidos ali. Exatamente por isso sabem que não tem nada a ver com a aparência ou rótulos, não faz nenhum sentido uma plástica para estar inserido em outra cultura.

Ocorre que os clichês encadeados no discurso da militância identitária legitimam a ideia de transracialidade. Pega-se um amontoado de invencionices para usar como axioma e resulta em pérolas como esta. Os autores argumentam que transexualidade e transracialidade são ideias muito diferentes e eu concordo. Mas qual a justificativa? Uma ideia que também justificaria o YouTubber transracial.

"Confundir identidade racial com identidade de gênero implica que ser trans é uma escolha e, portanto, raça também. A realidade é que a transição como uma pessoa trans é um processo difícil e desgastante, que pode ser perigoso, mas também salva vidas e deve ser comemorado", diz o artigo que xinga o YouTubber "transracial". Se surgir um troféu de arrogância e pobreza argumentativa, temos um vencedor.

O YouTubber também passou por um processo difícil, desgastante, perigoso e que, conforme ele próprio diz no vídeo, acredita ter sido uma salvação. Não significa que as crenças dele sobre a possibilidade de mudar de raça estejam corretas. Ele poderia ter simplesmente mudado de nacionalidade e sentido a mesma satisfação pessoal? Não sei. Não conheço o caso o suficiente mas parece que há muito além da Coreia em jogo nessa história.

A ideia de dividir pessoas em caixinhas de casos exatamente iguais e separados por raça, cor, classe social e identidade sexual não dá conta da infinidade de nuances das situações. A militância identitária precisava carimbar Oli London como homem branco privilegiado, por isso o rotula de transfóbico, racista e apropriador cultural.

Ocorre que colocar como exemplo de privilégio alguém que nitidamente está confuso, sofrendo e sem rumo é pesado e delirante. Não é exagerado dizer que o YouTubber talvez nem consiga enxergar as outras pessoas o suficiente para ser enfiado na caixinha do preconceito. Ele apenas sabe que não quer ser quem é e tenta encontrar uma identidade com a qual se sinta bem, com ajuda de médicos.

Embora não saquem da manga a carta da "transracialidade", muitas pessoas arriscam a vida em procedimentos estéticos todos os dias. Ninguém sabe direito quais são os limites, mas eles são frequentemente cruzados e só percebemos quando é tarde demais. Este ano, no dia do meu aniversário, um conhecido meu, talentosíssimo, morreu numa dessas. Diante disso, a gente diz que ele não precisava da intervenção. Teríamos dito o mesmo se desse certo? Não sei.

"Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada", cravou H. L. Mencken. Talvez não exista problema mais complexo que entender a alma humana.

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