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Facebook perde dinheiro se realmente combater desinformação e polarização
| Foto: Unsplash

Se você me acompanha, vai achar que é notícia velha essa história do Facebook. Dia sim outro também falo sobre como as redes sociais promovem ativamente conteúdos que incentivam polarização e divisionismo porque isso mantém as pessoas mais tempo usando suas plataformas. Ano passado, fiz até um e-book sobre o tema (que está á venda no Kindle e de graça NESTE LINK). Na minha coluna aqui na Gazeta do Povo você pode conferir quantas vezes fiz esse alerta sobre Big Techs ao longo dos últimos anos.

O que há de diferente agora é um conjunto de 8 denúncias feitas ao Congresso dos Estados Unidos pelos advogados da ex-diretora de Integridade Cívica do Facebook, Frances Haugen. Ela pediu demissão ano passado por considerar que é necessário debater com instituições e a sociedade civil o que realmente ocorre dentro das Big Techs. Levou consigo uma tonelada de documentos internos bombásticos, que acabam de vir a público.

O 60 Minutes é o programa de jornalismo investigativo mais bem sucedido do mundo. A equipe conseguiu toda a documentação com uma fonte no Congresso e entrevistou a ex-diretora de integridade cívica do Facebook. Frances Haugen foi contratada pela plataforma em 2019 e aceitou o cargo desde que pudesse atuar no combate à desinformação. A causa era pessoal, perdeu uma amiga para grupos de teorias conspiratórias.

Frances Haugen é o rosto por trás da denúncia publicada no Wall Street Journal de que o Instagram sabe ser nocivo à saúde mental de adolescentes mas escolhe não fazer nada e ainda pretende lançar uma versão infantil. Também trouxe este assunto em outro artigo na coluna, dias atrás. Era apenas uma das 8 queixas entregues, mostrando que o Facebook virou refém do próprio algoritmo e terá sérios problemas financeiros se combater polarização e desinformação.

O alerta mobiliza o governo e a imprensa dos Estados Unidos porque não estamos falando só de redes sociais, mas de algo que afeta até quem não tem nem internet porque muda o equilíbrio de poder econômico e político. Imprensa e políticos já estão rendidos à lógica da Cidadania Digital, controlada pelas Big Techs. Isso significa ter mais sucesso ao produzir conteúdos que gerem engajamento. O que gera mais engajamento? Desinformação e polarização. Já sentimos os efeitos.

Não se trata de uma conspiração maléfica nem as pessoas dentro do Facebook são malignas. Segundo a ex-diretora de integridade cívica, a empresa ficou financeiramente refém de uma decisão interna tomada em 2018. A partir dessa data, você passa a ver conteúdos com os quais tem mais probabilidade de interagir. As pessoas pensam que vêem todos os que seguem e há até uma opção para ver os conteúdos à medida que são publicados em vez de ver os principais. Mas você não vê tudo o que é publicado, embora seja iludido a crer nisso.

Ao rolar a tela uns 5 minutos, você pode ver centenas de conteúdos. Todos eles são escolhidos sob medida para você interagir e ficar mais tempo na plataforma. Agora responda: sua chance de ligar para algum lugar elogiando o atendimento recebido é maior ou menor que a de ligar para reclamar de atendimento ruim? Aí é que está o problema. Todas as pessoas estão vendo só as postagens que as deixam mais revoltadas.

Não estamos falando de ferir sensibilidades, mas de criar um sistema de aprendizado social em que só tem sucesso quem choca os demais. A pesquisa interna do Facebook com partidos políticos mostra que essa lógica já chegou ao universo do poder. Partidos e políticos dizem que, embora os eleitores não gostem de baixaria, é impossível ter alcance sem polarização e divisionismo. Alcance no mundo virtual já significa sucesso profissional e financeiro no mundo real. São muitos os que acabaram rendidos a essa lógica.

"Uma das informações mais chocantes que tirei do Facebook e que considero essencial para essa divulgação é que partidos políticos foram citados, em uma pesquisa do próprio Facebook, dizendo: sabemos que você mudou a forma como escolhe o conteúdo do feed. Agora, se não publicarmos conteúdo raivoso, odioso, polarizador e divisivo, não tem alcance. Não ganhamos nada com isso, não gostamos disso e sabemos que nossos eleitores não gostam disso. Mas, se não produzirmos esse conteúdo, não somos distribuídos. Fazíamos muito pouco conteúdo desse tipo e agora temos de fazer muito porque temos trabalho a fazer. E, se não obtivermos tráfego e engajamento, perdemos nossos empregos", declarou Frances Hagen, ex-diretora de Integridade Cívica do Facebook.

Em um dos documentos internos que a ex-diretora tirou da empresa e levou ao Congresso dos Estados Unidos, o Facebook admite ter ciência de como está afetando a sociedade. "Temos evidências de uma variedade de fontes de que discurso de ódio, discurso político divisionista e desinformação no Facebook e na família de aplicativos estão afetando sociedades em todo o mundo." , diz um trecho. As redes sociais não inventaram polarização e divisionismo, mas inauguram uma era isso passa a ser obrigatório para não cair no ostracismo.

"Quando vivemos em um ambiente de informação cheio de conteúdo raivoso, odioso e polarizador, isso corrói nossa confiança cívica, corrói nossa fé uns nos outros, corrói nossa capacidade de querer cuidar uns dos outros, a versão do Facebook que existe hoje está separando nossas sociedades e causando violência étnica em todo o mundo", explica a ex-diretora de Integridade Cívica do Facebook, Frances Hagen.

Engenheira, 37 anos e com MBA em Harvard, a ex-diretora do Facebook diz ter tomado a decisão de vir a público porque resolver esse nó estava cada vez mais complicado internamente. Esta semana, ela prestará um depoimento público na mesma comissão do Congresso dos EUA que ouviu Mark Zuckerberg há alguns dias. O tratamento da questão lá é bem diferente da abordagem brasileira. Nos Estados Unidos, em vez de focar em controle de conteúdo ou derrubada de perfis, analisa-se o impacto econômico da atuação da empresa, em um comitê específico.

Tempos atrás, fiz um artigo sobre a pesquisa da Mozilla Foundation mostrando que o YouTube do Brasil é considerado o mais tóxico do mundo pelos usuários. A entrevista da ex-diretora do Facebook explica essa dinâmica. Tem relação com o idioma. Cada idioma diferente exige que seja construído do zero todo um sistema de verificação de segurança exclusivo para ele. Fazer em português do Brasil, por exemplo, incluindo gírias e regionalismos, custa o mesmo que fazer o da língua inglesa, francesa ou espanhola.

"É muito importante lembrar que o Facebook ganha diferentes quantias de dinheiro para cada país do mundo. Cada vez que o Facebook se expande para uma dessas novas áreas linguísticas, custa tanto, senão mais, fazer os sistemas de segurança para esse idioma quanto custaria para tornar o inglês ou o francês. Cada novo idioma custa mais dinheiro mas há cada vez menos clientes. E assim, simplesmente não faz sentido econômico para o Facebook ser seguro em várias dessas partes do mundo", explica Francis Hagen.

Parece algo apavorante, a ideia original do Grande Irmão de George Orwell. Estamos todos enredados nisso e sem saída? Não. É um "efeito Mister M", agora que você sabe com o funciona não se encanta mais com o truque. O que você vê nas redes sociais é feito sob medida para que você reaja, não é o conteúdo que você considera bom. O mundo político e a mídia tradicional também vivem essa lógica. Comece a ver as coisas por este filtro, é um ótimo ponto de partida.

Ao programa 60 Minutes, o Facebook negou todas as acusações. Não aceitou uma entrevista, mas respondeu um questionário por escrito. Nega, inclusive, relatos que constam dos documentos internos levados agora ao Congresso. A resposta oficial é que a plataforma tem investido muito em combate à desinformação, polarização e ódio. Seria uma decisão tendo em conta que o ambiente violento é ruim para os usuários, para os anunciantes e para os negócios. O Facebook informou que mantém hoje contratos com 80 agências de checagem em 60 idiomas.

Talvez essa notícia, uma bomba nos Estados Unidos e Europa, não tenha tido o impacto que merece por aqui. É a primeira vez em que há provas concretas não apenas de que redes sociais interferem na sociedade e na política, mas de que sabem exatamente como interferem e decidem não agir devido às estratégias de crescimento e ao faturamento. Hoje, todos os serviços da empresa - Facebook, Instagram e Whatsapp - saíram do ar.

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