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Fake News, a fúria legiferante e os liberais de Taubaté
| Foto: BigStock

Quando Luis Fernando Veríssimo escreveu a crônica "A velhinha de Taubaté", em 1983, acabou selando o destino da cidade no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. Ela era a última pessoa do Brasil que acreditava no governo, mesmo nos maiores absurdos. Seu criador a matou numa crônica em 2005, no auge do Mensalão, de forma abrupta e misteriosa enquanto comia biscoitos assistindo um depoimento de Antonio Palocci numa CPI. Para a velhinha de Taubaté, acreditar no governo era essência da vida.

Como a vida imita a arte, Taubaté nos deu outros ícones. Talvez muita gente no país tenha se transformado na velhinha de Taubaté, o que nos brindou com o caso inesquecível da grávida de Taubaté e, mais recentemente, a reportagem do parkour de Taubaté. A tal "lei contra Fake News" e o movimento dos entregadores de apps são fruto de outro fenômeno: o liberal de Taubaté.

Suponha que o governo federal resolvesse limitar os bônus que podem ser pagos aos executivos dos grandes bancos, o que diriam nossos principais ideólogos sobre a medida? Vislumbro muitas postagens com a palavra comunismo, esquerda e cerceamento de liberdade. Ocorre que há um governo que realmente tomou esta medida, o de Israel, de direita, por razões de liberdade econômica. Quem não defende a própria dignidade mente quando diz defender uma ideia, é o nosso mal.

Todos nós nos deslumbramos com a tecnologia, impossível negar. A internet talvez seja a maior revolução que a sociedade humana já presenciou e nós assistimos empolgados e embasbacados tudo o que brotava dessa maravilha que não entendíamos, mas pela qual já estávamos apaixonados. Você já teve uma paixão avassaladora? Se teve, sabe que a principal característica é a cegueira.

Quando a chama da paixão começa a baixar, começamos a ver os defeitos e problemas do outro, ao mesmo tempo em que tentamos encontrar caminhos para seguir adiante. Há casos em que a emenda pode ficar pior que o soneto, como a Lei das Fake News. E outros em que se passa a relação a limpo, como o boicote de empresas tradicionais ao Facebook, que ficou bilionário escapando das mesmas regras que elas são obrigadas a seguir.

O Brasil tem uma fúria legiferante. Quando tem uma notícia que chama a atenção, pode apostar que alguém vai inventar no dia seguinte um lei para dar um jeito nisso. "Para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente errada", dizia H. L. Mencken. Esse tipo de solução faz muito sucesso entre a gente.

O problema do que se convencionou chamar de Fake News não está na falsidade da notícia, está na exploração não paga de dados pessoais e na manipulação psicológica consciente das pessoas para vender produtos e ideias criando bolhas radicais sobre tudo, da política ao veganismo e crossfit. Isso se faz por algoritmos e a nova lei, que não foi suficientemente discutida, além de não resolver o problema, cerceia liberdades.

O liberal de Taubaté é o político que, diante de uma solução inadequada e que piora o problema, começa a dizer que o problema não existe. São os parlamentares que disseram defender a "liberdade de expressão" nas redes sociais. Só existe liberdade numa sociedade quando há liberdade econômica e, para isso, não se pode permitir que um setor específico da economia lucre com o que é dos outros e fuja das responsabilidades, como estamos fazendo hoje.

As gigantes da tecnologia obviamente compreenderam primeiro como funciona o mundo digital e ficaram rapidamente bilionárias. Todos os empresários que vieram antes deles no mundo são burros e incompetentes? Por que só esse setor ficou tão rico nessa velocidade? Os outros setores, pouco a pouco, foram mergulhando na era digital, passando por transformações profundas que vão dos meios de trabalho à dinâmica de produção, passando por relações trabalhistas e relação com o público consumidor. Passaram-se décadas e eles descobriram a mágica de juntar bilhões tão rápido: tomar o que é dos outros e não ressarcir prejuízo causado a ninguém.

Explorar o encantamento das pessoas e lucrar em cima delas é tão antigo quanto a humanidade, a diferença é que as empresas tradicionais entenderam agora qual é o pulo do gato. Por isso, nos Estados Unidos, mais de 400 marcas, incluindo gigantes como Coca-Cola, Microsoft, Puma, Adidas, Unilever e Starbucks, não vão mais anunciar no Facebook. A próxima ação deve ser contra o Twitter. O verdadeiro liberalismo enfrenta o problema de forma efetiva.

Pense em todas as regras que essas empresas têm de seguir não só aqui no Brasil, mas em todos os países do mundo, mesmo nos que têm menos regulamentação. Avalie as regras que um pequeno empresário, um comerciante ou um salão de cabeleireiros precisam seguir. Há um conceito básico de pagar pelos insumos e mão-de-obra e responsabilizar-se no caso de provocar prejuízos a quem presta serviço, a clientes ou à sociedade. Por que essas gigantes bilionárias da tecnologia não precisam cumprir essas regras mais básicas em lugar nenhum do mundo?

Qual é o negócio das plataformas de redes sociais? Não é informação. Se for, tem algo de muito errado. Elas não pagam para redistribuir informações apuradas pelos meios de comunicação, que pagam profissionais para isso. Mas elas lucram com essa distribuição e, se houver algum problema relacionado à informação distribuída, alegam não ter nenhuma responsabilidade e não sofrem nenhuma consequência. Percebem que a equação não fecha? Na fase da paixão, vocês sabem como é, a gente deixa para lá. Agora, parece que está rolando uma DR com as grandes empresas.

Hoje há a discussão dos aplicativos de entrega. Muitos deles são financiados por investidores, entre eles fundos internacionais que têm dinheiro de tudo quanto é canto, inclusive de países como China e Rússia, que prezam tanto pela ética e pela dignidade humana. Pergunte a qualquer cooperativa de motoboys o tanto de regras que eles precisam seguir e o tanto de responsabilidades que precisam assumir. Pergunte aos restaurantes o mesmo. A divisão entre o custo da operação e a distribuição dos lucros é justa? É disso que se trata.

Toda a operação de redes sociais e de diversos aplicativos é fundamentada na coleta de milhares de dados pessoais de milhões de pessoas. É dessa forma que se torna possível elaborar o algoritmo que entrega a publicidade direcionada e que, como efeito colateral, cria as tais bolhas radicalizadas. A quem pertencem os dados? A cada indivíduo. Quanto te pagam pelo uso dos seus e que satisfação sobre isso é dada a você?

"Não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência", disse Leon Tolstoi. Acreditamos durante alguns anos que havia gênios como nunca a humanidade havia visto, o pessoal do Vale do Silício, que dominava algo muito mágico. Desvendada a mágica, é hora do freio de arrumação. Só há liberdade quando se trabalha com a verdade e a lei vale para todos. A internet é uma grande revolução e pode sim abrigar a liberdade de expressão algum dia. Depende de criar um ambiente onde as empresas que dominam esses meios obedeçam regras e falem a verdade. Ainda temos um longo caminho pela frente.

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