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Fake news, manipulação e golpes digitais são os grandes desafios da educação, diz OCDE
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Hoje em dia, 80% dos brasileiros dizem se informar principalmente por whatsapp. A pesquisa foi feita pela Câmara e Senado. Sempre que lembro disso imagino o pessoal dos meus grupos da família, amigos do colégio, subcelebridades, madames que não trabalham e autoajuda disfarçada de militância. Avalia cada decisão boa é tomada a partir das informações que saem dali. Agora vai, Brasil!

Toda hora alguém vem dizer que esse negócio de internet e rede social é uma porcaria, que não usa de jeito nenhum. Há duas verdades aí. A primeira é que rede social tem muito problema sim. A segunda é que não tem mais volta. Gostando ou não, estando ou não nas redes, as nossas vidas serão afetadas por essa dinâmica.

Internet não é só uma nova tecnologia, inaugura uma nova forma de construção e validação do conhecimento. Segundo a OCDE, o desafio para a educação do século XXI é ensinar a diferença entre fato e opinião. Além disso, tornar clara a detecção de fake news, manipulação e golpes digitais. A partir de agora, o PISA considera que é necessário ter essas habilidades para ser alfabetizado.

Se a gente já passava vergonha antes no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes da OCDE, temo que agora vão precisar criar uma categoria especial. Vai ter de país plenamente alfabetizado a precariamente alfabetizado e depois vai vir Brasil. Na última edição do PISA, somente 2% dos brasileiros foram capazes de distinguir fatos de opinião. Gostaria muito que fosse piada, mas é uma capacidade determinante para o futuro de um país. Nos demais países, a média também não anima: 15%.

A nossa grande vantagem é que o brasileiro se acha esperto, malandro. Sempre a gente sabe mais que o outro. Numa era como a de agora, da mudança de paradigma na construção do conhecimento, é a receita perfeita para o caos e os oportunistas. As pessoas precisam aprender novas referências sobre informação e validação porque o mundo mudou. Mas, como se julgam muito espertas, acham que já sabem. Prato cheio para golpista.

Pessoas que sabem usar as redes sociais crêem entender o que há por trás delas. São os alvos perfeitos dos golpistas, estes sim informados sobre o funcionamento dos algoritmos e como utilizá-los a seu favor. Dominar o funcionamento das redes a ponto de compreender perfeitamente o contexto, da mesma forma que compreendemos o contexto fora delas é o desafio do nosso tempo.

Temos visto, por exemplo, uma enormidade de iniciativas de regular fake news. Enquanto isso ainda há uma multidão de adultos pensando que fake news são mentira, notícia falsa, notícia tendenciosa ou erro no noticiário. A mente analógica pensa sempre em conteúdo, nem imagina que na era digital modulamos também nossos contextos. É impossível que qualquer tipo de regulamentação funcione sem educar as pessoas, alfabetizar para o mundo digital.

Esta semana, a OCDE lançou a publicação "21st-Century Readers - Developing Literacy Skills in a Digital World", com 216 páginas falando em detalhes sobre o tema. Não faz mais sentido considerar que uma pessoa é alfabetizada se ela não consegue ler o mundo em que está inserida, ainda que consiga compreender textos. Nosso mundo ganhou uma camada a mais de leitura, a do contexto digital.

Principalmente após a pandemia, ler o contexto digital é essencial para dar consequência às nossas ações em praticamente todas as áreas da vida cidadã. Trabalhar, receber informação, estudar, promover mudanças que queremos na sociedade são atividades que dependem hoje de compreender a dinâmica da construção e validação de informação digital. Para a OCDE, é essencial que essas habilidades meta-cognitivas façam parte dos currículos escolares.

"Alfabetizar no século 21 é aprender a construir e validar conhecimentos. As tecnologias digitais permitiram a disseminação de todos os tipos de informação, substituindo os formatos tradicionais de informações geralmente mais cuidadosamente selecionadas, como jornais e enciclopédias. O enorme fluxo de informações da era digital exige que os leitores sejam capazes de distinguir entre fato e opinião. Leitores devem aprender estratégias para detectar informações tendenciosas e conteúdo malicioso, como fake news e e-mails de phishing. A infodemia em eventos como este em que a pandemia de Covid-19 nos imergiu torna mais difícil discernir a precisão das informações, já que o tempo de reação é crucial. Isso ilustra como é essencial ser um leitor proficiente em um mundo digital.", diz a OCDE.

A dinâmica da informação nas plataformas é a do confronto e polarização. Pessoas que ainda não foram alfabetizadas para o contexto digital tendem a ser engolidas pelos algoritmos e passam a enxergar o mundo pelas lentes das redes sociais e da polarização política. As Big Techs alimentam uma lógica de que tudo é possível. Ocorre que as nações e o progresso são feitos das relações de confiança e de uma clareza absoluta da diferença entre certo e errado.

Segundo o Mapeamento de Conteúdo Curricular Educação 2030 da OCDE, a alfabetização digital está presente numa média de 40% dos ítens de conteúdo escolar. O país tido como modelo no controle de dados pessoais pelos cidadãos é o que mais investe em alfabetização para o contexto digital.

"A Estônia se destaca com quase 70% de seu currículo vinculado à alfabetização digital, seguida pela Coréia e Cazaquistão (pouco menos de 60%). Vários países introduziram (ou estão planejando introduzir) uma ou mais novas disciplinas relacionadas com as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) no currículo. Por exemplo, Austrália, Irlanda, Nova Zelândia, Portugal, Índia, Cazaquistão e o Vietnã propuseram ciência da computação, tecnologia ou tecnologia da informação como um assunto separado. Austrália, Chile, Estônia, Hungria, Irlanda, Japão, Holanda, Nova Zelândia, Escócia (Reino Unido) e País de Gales (Reino Unido), Brasil e o Cazaquistão relataram a introdução das TIC como conteúdo transversal em vários assuntos ou em todo o currículo." diz a OCDE.

Pode parecer exagero comparar a falta de compreensão do funcionamento dos algoritmos a analfabetismo. Eu também achava isso. Daí eu peguei o teste do PISA, que é para adolescente de 15 anos, fiz e não passei. Precisava voltar para a escola e voltei. O analfabeto tradicional tem consciência de que não sabe ler. O analfabeto digital acha que sabe, então interpreta qualquer rabisco do jeito que imagina e baseia suas ações e decisões nisso.

Fui um pouco desonesta nesse tom blasée do "precisava voltar para a escola e voltei". Não foi tranquilo assim não. Fiquei escandalizada, revoltada com o PISA, a OCDE, a internet, as freiras franciscanas, as freiras passionistas e, principalmente, dona Neide, minha professora de Português do ginásio. Talvez fosse injustiça minha. Fizeram tudo direito e quem desgraçou foi aquele bando de comunista da USP, onde eu estudei.

Eu passei em quase tudo, só não cheguei no nível máximo porque fiquei embananada na diferença entre lidar com conflito e corroborar conflito. Na verdade, eu nem entendi essa história. Para a minha cabeça movida a fita cassete e máquina de escrever, basta levantar os fatos, apurar e argumentar. Trata-se de vencer o conflito, certo? Errado, meu foco era no conteúdo, não no contexto.

No contexto digital, conflito quer dizer popularidade e visibilidade. Eu ainda não havia aprendido a ver quando ele era artificialmente criado usando mentiras, infâmias, difamação e desonestidade intelectual. Imaginava que bastaria postar a informação verdadeira para esclarecer. Só depois aprendi como esse universo funciona e quais são as formas de avaliar situações e reagir. As próximas gerações terão de chegar ao mercado de trabalho já com essa habilidade.

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