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Falsas acusações de racismo são passaporte para impunidade de universitários
| Foto: Pixabay

Imagine se você desse a um adolescente uma cartada mágica para ele sair ileso de todas as decisões bizarras que toma. Já demos. Escolas e universidades adotaram a crendice identitária como se fosse algo científico. Racismo, machismo e homofobia existem, não é esse o debate. Aliás, à pauta identitária pouco importa discriminação, o objetivo é empurrar goela abaixo da humanidade a anulação do indivíduo. Pessoas não teriam mais livre-arbítrio ou características singulares, são todas unicamente produto do meio. Danem-se a biologia, a psicologia, a medicina, a história.

A tentativa de eliminar preconceitos dentro do Smith College, em Massachussets, nos Estados Unidos, virou escândalo nacional. Grande iniciativa com uma terminativa patética. Em vez de empregar métodos cientificamente consagrados de mudança de comportamento, a opção foi pelo curandeirismo. A instituição decidiu que obrigar seus funcionários a admitir publicamente a existência de racismo estrutural seria a solução. Não é spoiler dizer que obviamente deu muito errado.

Os fiéis da igreja identitária frequentemente misturam os conceitos de etnia, status social e condição econômica num mesmo balaio. É uma alternativa inteligente para continuar sendo racista mas posar de antirracista. Outro dia, diante de um elevado debate sobre o aplicativo ClubHouse, contestei que o fato de ser só para IPhone fosse racismo. Inocente, argumentei que poderia ser uma divisão econômica do público. Fui educada pela igreja identitária imediatamente: quando se fala em racismo, obviamente se fala em problema socioeconômico. Nem o ET Bilu concordaria, mas muita gente concorda para não ser imediatamente tachada de racista pelo racista que formulou a teoria.

É desse mesmo sarapatel de coruja que se retirou o programa de combate ao preconceito do Smith College. As vítimas potenciais são os pobres-coitados dos estudantes de classe média alta. Os opressores potenciais são essa pobraiada que trabalha lá. A faculdade de artes liberais tem 145 anos de tradição e custa US$ 78 mil por ano (algo que pode chegar a R$ 1 milhão em alguns dias, então nem vou ter o trabalho de converter). Os funcionários encarregados de limpeza e segurança não são exatamente das famílias que podem pagar um carro popular por mês para um filho estudar artes liberais.

A ideia do Smith College é simplesmente seguir o catecismo da igreja identitária. Você elimina todos os outros fatores ou dimensões da realidade humana para focar exclusivamente no racismo. E o funcionário que não admitir publicamente a existência de racismo estrutural é racista. A preocupação deles é que trabalhadores da limpeza e segurança do campus possam discriminar os pobres estudantes oprimidos que pagam mais de US$ 6 mil por mês para virar artistas. Para muitos estudantes, virou um "liberou geral". Quem poderia imaginar, não é mesmo?

O caso mais conhecido é o de uma estudante negra e rica, criada em Nova Iorque, que resolveu comer numa sala interditada. Primeiro ela foi ao refeitório que estava fechado para os estudantes naquele dia. Alertada, passou a uma outra sala que também estava fechada, sentou-se no chão e comeu. Uma faxineira, ao ver alguém comendo no chão de uma sala interditada, chamou a segurança. Dias depois, a moça de 21 anos, cujo salário é metade do que custa a mensalidade da estudante, recebeu uma ligação de um repórter do Boston Globe sobre o fato. Era oficialmente racista agora.

A estudante repreendida talvez houvesse se deparado pela primeira vez na vida com uma barreira revoltante. Ouviu alguém dizer não. E foram duas vezes seguidas, ninguém aguenta. Primeiro ouviu que não poderia comer no prédio que nem era o dela porque estava reservado para um evento de crianças. Depois, diante da decisão sábia de comer sentada no chão de uma sala interditada, ainda teve de ouvir outro não. Daí já é demais, claro que se tratava de racismo esse tipo de afronta.

A estudante rica escreveu um textão no Facebook. Em seu relato comovente, era assediada por dois perversos funcionários da escola durante meses. A gota d'água foi a atitude deles diante do "crime de comer enquanto negra". Postou fotos de dois funcionários, um dos quais nem estava na universidade na data dos fatos. A casa de uma funcionária foi pichada com a palavra RACISTA. A sociedade civil ficou revoltada. A CNN, o Washington Post e o New York Times embarcaram. Era tudo mentira. Quem vai consertar os estragos?

A direção da Smith College não caiu na lorota tão fácil quanto movimentos antirracistas e a imprensa. Quem lida com adolescente rico há quase 150 anos sabe muito bem do que eles são capazes. Foi contratada então uma renomada banca de advogados para investigar o episódio a fundo. Foi produzido um relatório de 35 páginas que afasta completamente a acusação de racismo. Os zeladores apenas seguiram a orientação da segurança de avisar se vissem alguém no prédio interditado. Ocorre que avistaram uma menina má e rica.

A empresa também verificou a legitimidade das alegações de mais um ano de perseguição que a estudante fez em sua página do Facebook. Os órgãos de imprensa não tiveram esse cuidado, passaram o peixe adiante do jeito que encontraram. Também era mentira. Mas como alguém poderia desconfiar, né? É muito normal que seguranças, faxineiros e zeladores arrumem encrenca com gente que sabem ser milionária. Realmente parecia uma história crível essa do bullying de empregado de faculdade de rico contra filho de rico. Afinal, como reza o catecismo da igreja identitária, ignore os fatos e foque só na imaginação.

Desmascarada a mentira, a aluna rica simplesmente se fez de sonsa. Não pediu nem desculpas aos funcionários que acusou de racismo nas redes sociais e na imprensa nacional. A direção da faculdade também não se desculpou. Eles é que foram transferidos de posto e continuam sendo chamados de racistas. Recebem ameaças pela internet e correios. A principal acusada foi demitida devido a cortes na pandemia. Ouve perguntas sobre racismo em todas as entrevistas de trabalho. Quem consegue o carimbo de militar "pelo bem" pode tudo, inclusive as piores coisas.

Uma faculdade com tanta tradição não chegou a esse chiqueiro moral da noite para o dia. Estudantes ricos e mimados encontram na igreja identitária o ambiente perfeito para brincar de menina má de colégio chique. O melhor é que não pagam as consequências e ainda podem posar de militantes por causas nobres. Existe preconceito racial, este é um fato. Ignorar todos os demais problemas da humanidade e reduzir tudo às pautas identitárias é o que leva ao caos. Não é possível melhorar uma realidade que se ignora.

Transformar problemas sociais e causas justas em desculpa para gente mimada se safar de confusão tem sido um esporte mundial. Uma das modalidades é ressuscitar a alteração compulsória de vocabulário por meio de esculacho público. A humanidade só fez essa experiência uma vez, na linguagem do Terceiro Reich. Quem poderia imaginar que repetir essa experiência poderia criar tiranetes cruéis? Impossível de prever, então repetimos. No caso do Smith College, os próprios diretores acabaram virando reféns dos alunos.

Em 2014 houve uma discussão pública mediada por uma diretora da faculdade em Nova Iorque. O tema era "Liberdade de Expressão". Uma das painelistas defendeu que não se retirasse do currículo uma obra de Mark Twain porque contém a palavra "nigger", que é ofensiva. A painelista também defendeu que substituir a palavra é tentar recontar a história. Muito revoltante não ser possível limpar o passado racista da própria família como nós fizemos aqui com Monteiro Lobato. Claro que os estudantes se revoltaram e denunciaram a diretora por não denunciar a painelista. Ela se desculpou publicamente, óbvio. Liberdade de Expressão.

Depois, a mesma diretora participou de um debate sobre Black Lives Matter. Sacou da manga o mantra do infame que finge ser conservador: "All Lives Matter". Foi denunciada de novo, óbvio. Como assim não havia aprendido ainda a dizer só as coisas certas nos debates com liberdade de expressão? Claro que, mais uma vez, desculpou-se publicamente por uma infração tão grave.

Quando a imprensa começou a fuçar a denúncia falsa de racismo, no ano passado, a mesma diretora defendeu os funcionários. Disse que estamos vivendo na era do crime de "fazer algo enquanto negro" e era necessário pedir desculpas aos falsamente acusados. Desta vez, não foi denunciada. Foi exatamente após isso que a estudante dobrou a aposta da falsa denúncia. Depois de contar o incidente, resolveu fazer uma postagem com os nomes e as fotos dos zeladores que acusou falsamente. Foi então que começou o pesadelo deles. A diretora aprendeu a ficar bem calada desde então.

Diante do escândalo, decidiu-se fazer um treinamento sobre racismo na Smith College. Para os funcionários, evidentemente. Afinal, toda essa história só acontece porque os funcionários são racistas. A vingança da aluna rica contrariada por dois pobretões seria algo para o cinema, está evidente para a faculdade que não ocorreu. O treinamento consistia basicamente em fazer todos os funcionários declararem publicamente que existe racismo estrutural. Chega a ser emocionante.

Uma funcionária, que se recusou a fazer parte do teatrinho, acabou demitida e abriu um canal no YouTube. Foi aí que a questão ganhou novamente atenção nacional. Agora pela injustiça. Pouco importa como você e eu entendemos o conceito de racismo estrutural e se concordamos com ele. O ponto dela é outro. A partir do momento em que seu emprego depende de concordar publicamente com um conceito, você perde a bússola moral. O tal treinamento não passa de uma máquina de criar cínicos.

O caso que gerou a necessidade do treinamento antirracista não foi racismo claramente. Foi um caso de opressão? Sim, do rico contra o pobre. Mas nem a faculdade nem os alunos entendem assim. Gente pobre sofrer por capricho de gente rica está fora do catecismo da igreja identitária. Aliás, lá pobre só vale a pena em foto do Sebastião Salgado, que é inodora. Os únicos sofrimentos válidos nessa profissão de fé são o racismo, o patriarcado e a homofobia. Os dois zeladores, um com lúpus e outro com depressão, acabaram internados diante da perseguição que os chama de racistas e faz ameaças. Infelizmente, não se enquadra em sofrimento humano.

É evidente que, diante da pressão da faculdade, muitos funcionários vão simplesmente repetir o que a patrulha da igreja identitária mandar. Foi racismo estrutural, patriarcado, o ET Bilu, o comunismo, o socialismo fabiano. Só escolher, o pessoal repete e pronto, treinamento com sucesso. Se vier falar que talvez estudantes de elite seriam meio mimados, tem de ver se é mulher, negro ou gay. Se for, impossível ser mimado e oprimir gente pobre. Aliás, a própria reitora que se sagrou campeã olímpica em pedir desculpas públicas se meteu na história. Disse que, embora não exista evidência de racismo, não dá para excluir completamente o racismo estrutural.

O diretor de justiça racial da faculdade não tem pena dos dois zeladores com mais de 35 anos de serviço. Estão com as vidas desgraçadas e doenças psicossomáticas mas podem ser inconscientemente racistas. Disse que é muito difícil provar o racismo inconsciente. Também declarou que não podemos fingir que falsas acusações de racismo causam mais sofrimento que o racismo em si. Procurei exaustivamente o termômetro de sofrimento alheio na internet, mas não achei. Aparentemente, tem uma única régua: o sofrimento que não me dói chama-se mimimi.

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