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Funerária chega à Suprema Corte após proibir diretor de se vestir como mulher
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Se uma obra de ficção centrada no dress code de um atendente de funerária mobilizasse as altas esferas do Poder Judiciário e afetasse conquistas históricas das mulheres, obviamente a gente diria que é inverossímil. O caso "Harris Funeral Homes", que tramita atualmente na Suprema Corte dos Estados Unidos, supera a criatividade dos grandes romancistas. Não sei que tipo de ficção competirá com a nossa realidade.

Comecemos com a Harris Funeral Homes, uma empresa funerária tradicional, dessas que a gente vê em filme e seriado nos Estados Unidos. É uma empresa familiar que está na 5a geração, com mais de 100 anos de tradição e excelência reconhecida pela comunidade e imprensa local como a melhor de sua região, no Estado do Michigan. No Brasil, funerais e enterros são feitos geralmente nas primeiras 24 horas após a morte, mas o costume norte-americano é diferente. Os corpos são embalsamados e é feita uma recepção mais ou menos uma semana após a morte. Há cursos certificados para atender esse momento e essas famílias.

"A Harris Funeral Homes reconhece que sua maior prioridade é honrar a Deus em tudo o que fazemos como empresa e como indivíduos. Com respeito, dignidade e atenção pessoal, nosso time de profissionais cuidadosos empenha-se para superar as expectativas, oferecendo opções e assistência concebidas para facilitar o processo de cura e plenitude ao servir as necessidades pessoais da família e amigos quando eles passam por uma perda em suas vidas." - diz o estatuto de missão da empresa.

Há diversos detalhes envolvidos no processo de colocar a cura e o bem-estar do cliente à frente das necessidades do staff, um deles é o dress code. E foi exatamente por ele que a Harris Funeral Home foi parar na Suprema Corte dos Estados Unidos.

A explicação por trás do dress code é psicológica: o staff não deve ser foco das atenções no momento do luto, o cliente enlutado sim. Por isso, quando mais parecidas forem as roupas e mais adequadas ao tipo de conversa que se tem ali, melhor. Não se trata de nada complicado, uma espécie de esporte fino evitando coisas que distraiam o cliente, já que os negócios de uma funerária são feitos nos momentos mais dramáticos das vidas das pessoas.

Havia um manual completo de dress code para homens e outro para mulheres. E foi justamente aí o problema. Um funcionário que assinou contrato concordando com o dress code para homens, anos depois anunciou que passaria a usar o dress code de mulheres. A funerária não aceitou e foi processada.

O funcionário tinha o cargo de diretor de funerais e assinou o contrato concordando com o uso do dress code do sexo masculino. Seis anos depois, em 2013, ele pediu ao dono da funerária, Tom Rost, para se vestir e se apresentar como mulher ao receber as famílias enlutadas para discutir detalhes do velório, enterro ou cremação e apoio emocional para o luto. O que você faria diante de um pedido desses?

Tom Rost resolveu colocar na balança as necessidades de todas as partes envolvidas: as do diretor de funeral, dos outros funcionários e dos clientes da casa funerária. Decidiu não acatar o pedido para a mudança do dress code feminino para o masculino. Legalmente, se sentia seguro: havia um contrato assinado concordando com o dress code masculino e leis que garantem às empresas o direito de estipular códigos de vestimentas de acordo com o sexo.

Mas, no meio do caminho, tinha uma expressão: identidade de gênero. E, vejam bem, aqui não se trata dessa pataquada histérica e catártica de "ideologia de gênero" que domina as redes sociais com pouco conteúdo e muita bile. Trata-se de uma tecnicalidade que pode ter consequências devastadoras em conquistas históricas de direitos das mulheres. Uma agência governamental dos Estados Unidos processou a casa funerária porque o dress code não deve ser de acordo com o sexo, mas com a identidade de gênero.

A Harris Funeral Home foi processada pela Equal Employment Opportunity - Commission (EEOC) - Comissão pela Igualdade de Oportunidades de Emprego - por discriminação sexual. O argumento é que o dress code da empresa não pode ser feito por sexo, como manda a lei, mas tem de atender a identidade de gênero do funcionário.

A discussão, creio, não é sobre o direito das pessoas trans. Eu considero correto que a Riachuelo, por exemplo, adote nome social e dress code feminino para as pessoas trans já contratadas nessa condição. Flavio Rocha é um dos pioneiros na adoção do nome social na empresa e conheço diversos empresários que fazem o mesmo, uma atitude positiva, inclusiva e, sobretudo, humana. Conheço também alguns casos de pessoas que passaram em concurso na rede pública de ensino e, embora se identifiquem como mulheres e até se apresentem artisticamente como drag queens, preferem manter a identidade masculina em sala de aula.

A questão é como equacionar interesses e necessidades quando as mudanças são feitas durante o curso de um contrato de trabalho. No caso, não houve dúvida: optou-se pela via judicial. Uma empresa familiar enfrenta há 6 anos um processo que foi à Suprema Corte para decidir se o diretor de funeral pode passar a se vestir como mulher para receber os clientes.

Não há lei nos Estados Unidos que estipule a extensão de direitos femininos a homens que se identificam como mulheres. Mas a EEOC entende que, no caso do dress code, embora a lei diga "sexo feminino", tem de ser automaticamente adequado a "identidade de gênero feminino". E se, como é possível ocorrer dada a complexidade da alma humana, o funcionário resolver transicionar novamente para a identidade masculina? Vamos ter mais um baile jurídico até a Suprema Corte?

Os advogados da Harris Funeral Homes se apegam em um conceito jurídico específico: como uma agência governamental sem poder legislativo resolve redefinir legalmente o conceito de "sexo" para "identidade de gênero". Caso isso seja considerado válido pela Justiça, não se decidirá apenas o caso do diretor de funerais que quer se vestir de mulher, mas uma infinidade de outras situações. Nós, mulheres, conquistamos historicamente uma série de direitos que têm como base a desigualdade histórica e a necessidade de reparação. Homens que passam a se identificar como mulheres devem desfrutar desses mesmos direitos?

Abrigos públicos para mulheres devem acolher homens que se identificam como mulheres? E banheiros femininos? E vestiários? Bolsas de estudo direcionadas especificamente a mulheres devem ser disputadas também por homens que se identificam como mulheres? Pessoas trans têm direito a apoio e respeito e precisamos debater se a melhor forma é equiparação judicial com mulheres. Não é algo para burocratas definirem na canetada.

No caso em questão, o diretor de funerais se demitiu da empresa e entrou com a reclamação na agência governamental em 2013. Em 2016, a Justiça deu ganho de causa à Harris Funeral Home. A EEOC recorreu e obteve revisão da sentença, com ganho de causa no ano passado. A casa funerária pediu à Suprema Corte que ouvisse o caso e ela concordou - nos Estados Unidos, é algo dificílimo de acontecer. A sustentação oral foi apresentada na semana passada. Ainda não há previsão para a finalização do julgamento.

Para a Suprema Corte dos Estados Unidos, o caso não é de pauta identitária, é sobre algo técnico que afeta a vida de milhões de pessoas em todo o mundo: agências governamentais compostas por pessoas que não foram eleitas podem reescrever leis feitas por gente escolhida pelo povo para legislar? Um caso e tanto.

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