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Esqueça sua avó que está na fila da vacina do corona e meio ansiosa sobre as diferentes marcas. Indústria antivacina não é esse amadorismo nem a nossa desconfiança natural diante de novidades ou descobertas a jato da ciência. A indústria antivacina existia já muito antes do coronavírus, conta com o apoio das Big Techs e só aproveitou-se da desgraça da pandemia para crescer. Um artigo da revista Nature, feito depois que cientistas conseguiram entrar em reuniões dos profissionais do ramo antivacina, explica como esse novo mercado funciona.

O paper publicado ontem pelo Center for Countering Digital Hate, sediado em Washington, mostra as entranhas do funcionamento de uma indústria multimilionária que nada tem a ver com saúde. São empresas de porte médio, por volta de 60 funcionários cada, a maioria sediada nos Estados Unidos, com foco principal em propaganda. A atuação tem ficado mais forte sobretudo nos últimos 10 anos e começou explorando o mercado de medicina alternativa e veganismo. O sucesso, no entanto, só veio com a ajuda das Big Techs, principalmente as redes sociais.

Redes Sociais sinalizam como falsos e suspendem, aqui e acolá, posts de celebridades quando consideram ser antivacina do COVID. Fazem a maior propaganda sobre isso. No entanto, 70% das visualizações de vídeos antivacinas no YouTube são recomendações do próprio YouTube aos usuários. O trabalho publicado agora mostra que, aproveitando-se do medo das pessoas na pandemia, os antivacinas chegaram a um público de 59 milhões de usuários. Com ajuda das Big Techs, vendem produtos que parecem inofensivos às custas da saúde física e mental do cidadão comum.

Sou da geração Zé Gotinha, jamais havia imaginado a existência de antivacinas depois de 1904, na Revolta da Vacina. Descobri que eles existiam em 2003, durante a cobertura da CPI da Pirataria na Assembleia Legislativa de São Paulo. Um colega vegano me explicava sobre descobertas internacionais acerca dos malefícios das vacinas, reclamava que o Conselho Tutelar tinha sido acionado pela escola porque não vacinou os filhos. Fora obrigado a vacinar, era uma aberração que ocorresse. Na época, recorreu aos gurus antivacina new age e comprou um spray que anularia todo e qualquer efeito maléfico das vacinas no corpo das crianças. Gastou uma pequena fortuna.

Até a primeira década do século XXI, antivaxx era uma espécie de culto que se originava num paper publicado em 1998 relacionando vacinas a autismo. O autor já admitiu que era mentira, perdeu a licença médica. Tinha feito um acordo com um escritório de advogados que pedia indenizações com base na correlação inexistente entre vacina e autismo, comprovada só pelo tal estudo fraudado. Ocorre que isso criou um mercado enorme na comunidade até então classificada por muitos como "natureba". E ninguém quis abrir mão do filão.

Confesso que simplesmente esqueci da história durante muitos anos. Na virada de século, tivemos muitos tipos de modismos. Lembram-se do povo que saía atrás de disco voador? E do culto aos gnomos? Tinha aquela história de fazer um cálculo para descobrir qual o nome do anjo que cuidava de quem. Soube até de um pessoal que bebia a própria urina no que julgava ser uma terapia alternativa. Para mim, os ativacinas estavam na mesma prateleira do modismo absurdo que em breve passaria. Pura ilusão.

Encontrei novamente com os antivacinas em 2010, na campanha pela erradicação da pólio em Angola. Estava preparadíssima para a boataria de que vacinas seriam uma espécie de envenenamento que os europeus estavam mandando para as populações negras. Também já havia me preparado para os argumentos dos líderes tribais e animistas. Tinha até estudado como lidar com nossos irmãos neopentecostais que ali se instalaram e estavam exagerando ao confundir Jesus com anticorpo. Mas eu não esperava o antivacina europeu de classe-média-alta educado e progressista. Encarnou ali a máxima de Daniel Boorstin: "o maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento".

Foi possível convencer líderes tribais, curandeiros e religiosos animistas sobre a necessidade de colaborar na vacinação. Líderes neopentecostais brasileiros ajudaram muito a tornar suas denominações potências na colaboração para a erradicação da pólio em Angola. Já o europeu papai-sabe-tudo progressista só se resolveu quando o governo angolano decidiu deportar sem prévio aviso quem não vacinasse os filhos contra a pólio. Nenhum foi deportado. Maldosos diriam que é porque ganham salários nababescos em Angola. Imagine, foi para ajudar.

O mercado antivacina é diferente de outros mercados de crendices como gnomos, por exemplo, porque é a tempestade perfeita para a propaganda, já tem seguidores muito fiéis e com boa capacidade financeira. Após a popularização das redes sociais e a mudança dos algoritmos, em 2010, o mercado antivacina passou a ser ainda mais promissor. A chegada da pandemia é o momento do ápice. Como toda a captação de seguidores se baseia em insegurança e medo, a maior bênção da indústria antivacina é a desgraça da humanidade.

Tem sido moda nas redes sociais chamar de antivacina todos que têm qualquer tipo de dúvida sobre alguma vacina específica. Como o artigo da Nature é científico, ele trata especificamente do que se denomina antivacina da forma clássica, não do xingamento. É uma indústria que se organiza como todas as demais, só que o negócio dela é vender produtos baseados na propaganda antivacina. Que produtos são esses? Vão desde remédios e vitaminas alternativas até palestras, canais de youtube e publicações das celebridades criadas por essas máquinas de propaganda.

Atualmente, a indústria antivacina funciona como todos os outros ramos. Reúne-se anualmente em grandes conferências nas quais discute mercado, perspectiva de futuro, novas oportunidades e melhores estratégias de captação de clientes. As grandes empresas do setor "produzem manuais de treinamento para ativistas, arquitetam suas mensagens para diferentes públicos e organizam reuniões semelhantes às conferências anuais de negócios, como qualquer outro setor", conta o artigo da Nature, cujos autores foram às tais conferências.

"Os antivacinas veem a pandemia como oportunidade de criar rapidamente dúvida sobre a vacina contra COVID19 como forma de estendê-la a todas as vacinas. Há vários fatores favoráveis. As mídias sociais deram nova vida a várias formas de extremismo, e extremistas de diferentes tons reconheceram seu potencial para impulsionar a mudança social. Desinformação, que a mídia tradicional filtra por meio de seu padrões editoriais, de repente não foram filtradosé disseminada à maior parte da população mundial. Lembre-se de que o Reino Unido perdeu seu status país livre de sarampo status em 2019, bem antes da COVID-19, devido a diminuição das taxas de imunização, enquanto surtos de sarampo surgiram também em partes dos EUA", explica o Center for Countering Digital Hate.

A indústria antivacina não é composta só por pessoas que falam contra vacinas. Ela atua em 3 frentes durante a pandemia:
- A COVID-19 não é tão perigosa
- Vacinas são perigosas
- Médicos e cientistas não são confiáveis
Há uns poucos que lucram muito com essa narrativa, sempre ajudados pelas Big Techs, com quem dividem o lucro. Atualmente, 59 milhões de pessoas seguem profissionais que atuam nessa indústria e o número tende a crescer.

"Os antivacinas se distribuem pelas mídias sociais, encontrando maneiras novas e variadas de injetar desinformação nas nos feeds de notícias dos usuários. Nesse sentido, eles são muito mais eficientes para alcançar pessoas do que o
Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido e a Organização Mundial de Saúde, que contam com sistemas centralizados de comunicação em perfis digitais com pouco engajamento e pouca 'personalidade' ou 'autenticidade'."
, conclui o estudo. Não há uma hierarquia entre antivacinas, há um sistema autônomo e colaborativo em que várias empresas lucram, cada uma no que faz melhor. Há os que minimizam o COVID-19, os que falam sempre contra médicos e cientistas, os que sistematicamente falam mal de vacinas e remédios. Juntos, criam insegurança no público e conduzem muitos aos grupos ondem vendem seus produtos.

A solução mais simples para que a indústria antivacina se adequasse aos padrões mínimos de legalidade, moralidade e civilidade seria se as Big Techs o fizessem. "Não há justificativa moral para lucrar com mentiras prejudiciais e não há barreira legal para que as empresas de mídia social apliquem as próprias regras de violação de seus termos de serviço. Na verdade, nos EUA, as decisões de moderação são explicitamente protegidas pela lei. O problema nunca foi de capacidade, em vez disso, tem sido de vontade. As Big Techs não agiram porque seu modelo de negócios depende de manter usuários em suas plataformas percorrendo conteúdo intercalado com publicidade, independentemente do impacto desse conteúdo na sociedade. Sua omissão precisa ser punida com uma dura regulamentação governamental", defende o Center for Countering Digital Hate.

A preocupação dos pesquisadores não é com a leniência das Big Techs diante de pessoas comuns que postam suas dúvidas sobre vacinas. Isso é liberdade de expressão. O ponto aqui é outro, bem diferente. As redes sociais sabem muito bem e há muitos anos quem são os megainfluenciadores digitais que lucram com mentiras ligadas à indústria antivacina. Também sabem o quanto eles cresceram durante a pandemia e as consequências dantescas do fenômeno. Quantas vidas e quanto da nossa saúde mental vale o lucro desse punhado de gente? Esse é o ponto.

A indicação para governos e organizações da sociedade civil é cada vez mais estudar e conhecer as estratégias de desinformação e radicalização online. Como tudo isso é montado em cima das formas tradicionais de comunicação, o conhecimento é vital para não acabar ajudando sem querer os oportunistas. Infelizmente, comunicadores tendem a agir de forma defensiva e apenas racional diante de desinformação. É exatamente o que os propagandistas esperam. As estratégias são feitas já contando com a reação dos comunicadores de espalhar uma declaração, postagem ou vídeo com comentário desmentindo.

Muitos de nós tendemos a fazer isso também, principalmente em grupos de amigos ou família. Quando se trata de propaganda, criar atrito, contrapor ou expor a pessoa que acreditou não é nunca a melhor solução. Propaganda, no senso comum, é uma palavra que usamos como sinônimo de publicidade. Trata-se no entanto de dois processos muito diferentes. A publicidade é argumentativa e de convencimento. A propaganda não, é uma estratégia de persuasão usando táticas emocionais e psicológicas com finalidade político-ideológica. Não há como dissuadir com convencimento, há que se utilizar também práticas emocionais e psicológicas.

Uma atitude importante ao lidar com postagens antivacina ou desinformação sobre COVID-19 é jamais comentar ou rebater. Segure a tentação por dois motivos. O primeiro é que não adianta nada. O segundo é que envia uma mensagem de propaganda para todos os seus seguidores. Quer ajudar? Dissemine postagens serenas e com informações confiáveis. Se tiver se vacinado, compartilhe o momento. Compartilhe histórias de cura e de conhecidos ou famosos vacinados. A única arma contra a indústria antivacina é jamais agir com a beligerância dela.

Outra dica importante que aparece no artigo é restaurar nossos laços humanos de confiança. Não é apenas pela pandemia que tantos acabaram vítimas de grupos oportunistas via redes sociais. A falta de contato humano foi voluntária, antes do nosso afastamento forçado. Quem já teve a doença, médicos na linha de frente e cientistas, na medida do possível, podem compartilhar suas experiências com aqueles que já confiam neles. Falo aqui do grupo de amigos, da família, dos vizinhos. Essas conexões afetivas, que passam longe do racional, são poderosas. Passamos pelo maior drama e pelo maior desafio da nossa geração. Infelizmente, há oportunistas. Felizmente, são minoria.

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