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Instituto Confúcio: denunciado pela Human Rights Watch e sucesso no Brasil
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Já imaginou se em todas as universidades do Brasil só houvesse docentes que conhecessem a história do Cavalo de Tróia? Há séculos, Homero contou em Odisseia a estratégia do rei de Esparta para recuperar sua mulher, capturada pelo rei de Tróia: colocou no território inimigo um cavalo recheado de guerreiros espartanos. A sabedoria brasileira já assimilou essa lição e reza que, quando a esmola é muita, o santo desconfia. Infelizmente, nas nossas universidades, parece faltar desconfiômetro.

Muitos acadêmicos reclamam - e com toda razão - que vivemos um clima de absoluto desprezo por conhecimento, método científico, intelectualidade, crítica e arte. Parece haver um clima de que é possível demolir toda essa construção humana e substituir pelo grito, senso comum e força bruta, como se o ser humano que ficou soterrado na Idade Média revivesse em toda sua miséria e atraso. Voltando às lições dos antigos, onde esse movimento já foi implantado com sucesso como política de Estado? Na Revolução Cultural Chinesa, promovida por Mao nas décadas de 1960 e 1970.

Seria prudente permitir que o mesmo partido que perseguiu e expurgou, com sua Guarda Vermelha, professores, artistas e intelectuais se instalasse dentro das universidades? O Brasil permitiu e, ao contrário de diversos outros países, ainda não percebeu que a demolição da universidade está sendo feita de dentro para fora.

O Partido Comunista Chinês consolidou a liderança de Mao Tse-Tung fazendo com que ele virasse o centro da vida de cada cidadão chinês. Para que isso fosse possível, a Revolução Cultural Chinesa removeu à força outros valores que dão base à sociedade, como a tradição cultural, o conhecimento acadêmico e as religiões. Todas essas três áreas da vida humana passaram a ser ocupadas por Mao.

Menos de 50 anos depois, na virada do século, o mesmo Partido Comunista Chinês começa a oferecer "ajuda" a universidades em todo o mundo. Disse estar fazendo um centro cultural aos moldes do alemão Goethe, do espanhol Cervantes, da italiana Società Dante Alighieri ou do português Instituto Camões, que difundem no mundo inteiro o idioma e a cultura tradicional dos países. Como o mesmo partido que esculachou publicamente Confúcio, o principal representante da tradição cultural milenar da China, convenceria o mundo de que agora passou a louvar essas tradições? Criou-se, em 2004, o "Instituto Confúcio".

O Partido Comunista Chinês atacou sistematicamente Confúcio nas décadas anteriores porque ele representava tudo o que a Revolução Cultural queria pisotear: valores conservadores, hierárquicos e patriarcais. Mas o China Post, jornal independente de Taiwan, explicou por que este foi o nome dado à instituição: "certamente, a China teria feito poucos progressos se os tivesse nomeado como Institutos Mao, ou até mesmo os Institutos Deng Xiaoping, mas, ao tomar emprestado o nome Confúcio, criou uma marca que foi imediatamente reconhecida como um símbolo de cultura chinesa, radicalmente diferente da imagem do Partido Comunista.”

Pragmático, o Partido Comunista Chinês percebeu, na virada do milênio, que a elite intelectual e acadêmica do Ocidente estava obcecada com batalhas no universo simbólico. Todas as lutas por igualdade, feitas a partir de pessoas e problemas reais no século XX, passaram a se resumir ao universo simbólico do cotidiano da classe média urbana.

Ao se deparar com o momento em que mudança de vocabulário é entendida por intelectuais, universitários e artistas como luta efetiva contra o racismo, o machismo, a homofobia e a gordofobia, a China fez a jogada. Se o nome do instituto for Confúcio, ele será visto como amigo do conhecimento universitário e das tradições culturais, não importa que seja gerido pelo partido que massacrou tudo isso recentemente. Funcionou no mundo todo.

Millôr Fernandes cunhou a frase inesquecível e jamais desmentida: "quando uma ideologia fica velhinha, ela vem morar no Brasil". Os primeiros países ocidentais a sediarem o Instituto Confúcio já decidiram fechar ao perceber que a prática não tem relação com a pregação. Aprender a língua chinesa e passar nos exames de proficiência foi o atrativo principal para muitos, já que os estudantes estão de olho em oportunidades comerciais e de futuro. Só que o pacote vinha com uma célula do Partido Comunista Chinês dentro da universidade, o que tem consequências.

O primeiro alerta público dizendo claramente que o Instituto Confúcio resultaria em perda de liberdade acadêmica foi publicado pelo jornalista australiano Geoff Maslen em 2007. Pela proximidade geográfica, a Austrália tem conhecimento sobre os métodos chineses e o jornalista é especializado na cobertura de educação, fundador do noticioso University News. Alunos e professores da Universidade de Melbourne levaram a sério o alerta e se mobilizaram contra a parceria, o que gerou reações similares em universidades da Europa e Estados Unidos.

"Universidades de todo o mundo podem perder sua liberdade acadêmica ao aceitar doações do governo chinês para a criação de institutos Confúcio, adverte uma ex-diplomata australiana. A professora Jocelyn Chey diz que os acadêmicos devem estar cientes do potencial de enviesamento quando os institutos Confúcio começarem a realizar ensino ou pesquisa como parte das atividades principais de uma universidade. Por causa dos vínculos estreitos dos institutos com o governo chinês e o Partido Comunista, Chey disse que isso poderia levar, na melhor das hipóteses, a um 'emburrecimento' da pesquisa e, na pior, poderia produzir propaganda", reportou Geoff Maslen em 2007, após conversar com a ex-cônsul da Austrália em Hong Kong e uma das acadêmicas mais especializadas em China do país.

Em 2009, universidades dos Estados Unidos já tinham produção acadêmica analisando os efeitos reais da presença dos Institutos Confúcio. Uma das análises mais conhecidas, difundida em centenas de universidades em todo o mundo é a do cientista político James F. Paradise, da UCLA, Universidade da California em Los Angeles.

"A China está criando o Institutos Confúcio ao redor do mundo para divulgar sua língua e cultura e aumentar a colaboração com instituições acadêmicas estrangeiras. Os institutos poderiam aumentar o 'soft power' da China e ajudá-la a projetar uma imagem de si mesma como um país benigno. Existem preocupações sobre um efeito de 'cavalo de Tróia'", alertou o cientista político James Paradise em 2009. Em 2010, o primeiro Instituto Confúcio foi fechado, no Japão.

"Soft power" é um conceito objetivo, cunhado pelo cientista político Joseph Nye ao final da guerra fria. Ao final dos anos 80, o norte-americano defendia que haveria uma nova forma de conquista e domínio depois que o mundo testemunhou a falência do "hard power" para impor as promessas de duas potências gigantescas, Estados Unidos e União Soviética. O "hard power" é uma combinação de força militar com sanções econômicas e pressões políticas, que não deu vitória absoluta a nenhum lado. Por isso, ele analisou que as conquistas seguintes viriam por meio do "soft power", uma dominação por meio da cultura, da religião, dos esportes e da língua. Esta estratégia já é vista por inúmeros cientistas políticos como a nova forma de colonização.

É um erro comum pensar que o exercício do "soft power" é fazer com que as pessoas passem a adotar ou gostar da cultura, língua, esportes ou religião do dominador. Aqui se fala de um conceito diferente, o de atuar no âmbito cultural para que os dominados passem a se comportar da forma que interessa ao dominador. No caso do Partido Comunista Chinês, a substituição de religiões e conhecimento acadêmico pela adoração ao Estado foi concretizada acusando intelectuais e universidades de "doutrinação ideológica". Emburrecer o ambiente acadêmico e realmente promover um clima de dominação ideológica talvez levasse outros povos a desprezar conhecimento e se agarrar a ideologias como se fossem religiões.

O Instituto Confúcio foi inaugurado em 2004, na Coreia do Sul e o plano do Partido Comunista Chinês era ter, até o final deste ano, mil unidades em funcionamento no mundo todo. Até 2018, já haviam sido inaugurados mais de 1200 unidades em 147 países do mundo.

O "soft power" na prática

Parece impossível emburrecer um sistema universitário inteiro e fazer com que as pessoas passem a aceitar a substituição do conhecimento e do método científico por doutrinação política e ideologia. Aliás, parece até teoria da conspiração, o que confirma a máxima: toda nova tecnologia eficiente parece mágica num primeiro momento.

A cultura de um povo ou de uma instituição só pode ser mudada promovendo desengajamento moral e abandono dos princípios e valores. Isso se faz aos poucos, impondo situações reais em que as pessoas passem a burlar as regras que respeitavam antes, alargando o limite o máximo possível. Vamos aos exemplos reais.

A primeira crise do Instituto Confúcio foi com a Universidade de Sangyo, em Osaka, uma instituição particular. O diretor do conselho, Shigesato Toshiyuki disse publicamente que se tratava de uma agência de espionagem para coletar inteligência cultural, não de uma organização tradicional para promoção de cultura. Diante da denúncia, a primeira providência foi enviar um pedido de desculpas formal, escrito em chinês, ao governo da China.

"Shigesato Toshiyuki, ex-diretor do conselho da universidade, disse em um comunicado que o Instituto Confúcio é uma agência de espionagem criada para reunir inteligência cultural. A Universidade Osaka Sangyo pede desculpas por seus comentários inadequados e insensíveis, que causaram muitos problemas. Garantimos que incidentes semelhantes nunca mais acontecerão", disse o comunicado oficial. Fiz questão de grifar "ex": o diretor do conselho foi demitido e humilhado publicamente por vocalizar uma denúncia, briga que se arrastou na Justiça do Japão. O fato é que aparentemente não teve mais espionagem por lá, já que nenhum outro funcionário denunciou nada e o instituto continua aberto até hoje.

O outro exemplo é de quem não aceitou pisotear seus princípios e valores para receber um Instituto Confúcio, a Universidade McMaster, no Canadá. Uma professora descobriu que o instituto não contratava nem concedia bolsas de estudo a pessoas de determinadas religiões e oficializou uma queixa de violação de Direitos Humanos. Comprovada, a universidade decidiu encerrar a parceria e fechar o Instituto Confúcio alegando que o governo Chinês não pode tomar decisões sobre contratações dentro da Universidade McMaster, que tem autonomia universitária e segue leis canadenses.

A imprensa canadense reportou o caso como uma evidência da forma charmosa e elegante do uso do 'soft power' pela China. Àquela altura, em fevereiro de 2013, o país tinha mais 11 Institutos Confúcio e não apenas nas universidades, eles haviam feito parcerias com escolas de ensino médio e fundamental. O parlamento canadense passou a discutir seriamente a questão. Em 2017, uma jornalista e documentarista chinesa que vive no Canadá, Doris Liu, lançou o primeiro documentário sobre o tema, "Em nome de Confúcio: a verdade escondida por trás do esforço chinês de educar nossa juventude". Assista o trailer legendado em português:

Human Rights Watch condena os Institutos Confúcio

Em 21 de março do ano passado, depois de investigar a atuação do Instituto Confúcio por meio de mais de 100 entrevistas e visitas em 5 países diferentes, a Human Rights Watch emitiu um comunicado denunciando diversos casos de violação de direitos humanos ligadas à atuação do Instituto Confúcio e alertando que se trata de um esforço do governo da China para enfraquecer a liberdade acadêmica também além de suas fronteiras.

A Human Rights Watch é uma organização fundada em 1978 nos Estados Unidos para investigar e monitorar como e se a União Soviética estava cumprindo o Acordo de Helsinque, assinado por 35 países, sendo Estados Unidos, Canadá e quase toda a Europa. Foi uma forma de reduzir as tensões da Guerra Fria assegurando principalmente não interferência em assuntos ou territórios nacionais e o respeito às liberdades individuais e à Declaração Universal dos Direitos Humanos inclusive pelos soviéticos e seus aliados.

Com mais de 40 anos de experiência em monitorar violações de liberdades nos sistemas comunistas, a Human Rights Watch declarou que: "Muitas faculdades e universidades ao redor do mundo com ligações com o governo chinês ou com grandes populações de estudantes da China não estão preparadas para lidar com as ameaças à liberdade acadêmica de uma forma sistemática. Poucos se moveram para proteger a liberdade acadêmica contra problemas de longa data, como proibição de visto para acadêmicos que trabalham na China ou vigilância e autocensura em seus campi". No ocidente, costumamos pensar que as pessoas são o que pregam. É um erro: pessoas são o que toleram.

Desde março do ano passado, é público o código de conduta de 12 passos da HRW para que instituições de ensino em todo o mundo não sejam coniventes com ataques à liberdade acadêmica. A íntegra está neste link, eu traduzo o resumo abaixo:

Todas as instituições de educação superior devem:
1. Defender publicamente a liberdade acadêmica
2. Reforçar a liberdade acadêmica no campus.
3. Conter ameaças contra a liberdade acadêmica.
4. Registrar os incidentes em que o governo da China atentar contra a liberdade acadêmica.
5. Fazer parcerias com outras instituições acadêmicas quando for promover pesquisas na China.
6. Oferecer flexibilidade para estudantes que trabalhem na China.
7. REJEITAR OS INSTITUTOS CONFÚCIO
8. Monitorar outras organizações ligadas ao governo Chinês.
9. Promover ativamente a liberdade acadêmica dos estudantes que venham da China.
10. Divulgar publicamente tudo o que for recebido de financiamento chinês.
11. Garantir a liberdade acadêmica em programas de intercâmbio ou feitos em vários campi.
12. Monitorar o impacto da interferência do governo chinês na liberdade acadêmica.

Antes desse posicionamento público da Human Rights Watch, muitas das denúncias eram vistas como teorias da conspiração. Estudantes e funcionários chineses relatavam que até suas famílias eram ameaçadas caso desagradassem o governo até mesmo em um comentário na aula. Estudantes e professores estrangeiros relataram casos de vazamento de dados e pressão do governo chinês por autocensura, sendo a principal delas impedir que figuras inimigas do Partido Comunista, como o Dalai Lama, tenham voz diante dos estudantes.

Até então, somente as instituições que realmente são rígidas em seus princípios e valores haviam banido o Instituto Confúcio. É um inconveniente enorme abrir mão de um financiamento generoso e ainda arrumar briga com uma superpotência comercial, que vem a ser o país mais populoso do mundo e líder em Inteligência Artificial e uso de dados. Depois disso, começou uma avalanche: a documentarista Doris Liu mantém uma tabela, que você pode conferir neste link.

Desde abril deste ano, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, resolveu tomar uma ação no mesmo sentido das medidas recomendadas pela Human Righs Watch e as reações mostram que a política de emburrecimento dos intelectuais funciona. Em agosto, ele chegou a declarar publicamente que o Instituto Confúcio é um braço de espionagem do Partido Comunista Chinês, exatamente o que dizem as organizações internacionais de direitos humanos. Como Trump é Trump, a maior parte da imprensa leu como uma guerra entre direita e esquerda no poder, bravata, teoria da conspiração e peça da campanha presidencial.

Trump não foi o único governante a decidir encerrar os Institutos Confúcio, a Bélgica acaba de tomar a decisão depois de confirmar que o diretor da unidade instalada na Vrije Universiteit Brussel prestava serviços de inteligência para o governo da China, recrutando espiões e informantes nos meios universitário e empresarial do país. Em seguida, Austrália, Dinamarca, Holanda, França e Suécia decidiram fechar os institutos, o governo da Índia passou a analisar o tema e até nossa vizinha, Argentina, está preocupada.

Institutos Confúcio no Brasil

Há um predomínio de pessoas mais simpáticas à esquerda nas universidades brasileiras, principalmente na área de humanas, com as quais se faz praticamente todos os acordos do Instituto Confúcio. Há na esquerda brasileira uma área que se comporta como se tivesse, além do monopólio da virtude, o monopólio de outros temas, como Direitos Humanos.

Diante de um comunicado da Human Rights Watch instando a tomar medidas para proteger a liberdade acadêmica, o que você acha que nossos militantes pelos direitos humanos fizeram? Nada. Por outro lado, boa parte da minoria de direita nas universidades vê a questão dos direitos humanos como bobagem e pauta política dos adversários. Onde essa inteligência toda colocou nossos estudantes? Nas mãos do Instituto Confúcio.

Hoje, no Brasil, 11 universidades têm unidades do Instituto Confúcio. São instituições públicas e privadas, em diversos Estados do país. Conheça as unidades:

Instituto Confúcio Unesp, premiado várias vezes como o melhor do mundo, tem unidades em 13 cidades paulistas e 2 em outros Estados. Além das unidades parceiras de Manaus e São Luiz, o instituto está em Ilha Solteira, Presidente Prudente, Marília, Assis, São José do Rio Preto, Jaboticabal, Araraquara, Franca, Botucatu, Bauru, São José dos Campos, Itapeva e duas unidades na capital paulista.

Além do maior do país, também há outros menores, em convênios com universidades públicas e privadas:
- Instituto Confúcio na Unicamp
- Instituto Confúcio UnB
- Instituto Confúcio UFMG
- Instituto Confúcio UFRGS
- Instituto Confúcio UPE
- Instituto Confúcio UFC
- Instituto Confúcio UEPA
- Instituto Confúcio de Medicina Tradicional Chinesa na UFG
- Instituto Confúcio PUC-Rio
- Instituto Confúcio FAAP

O que fazer diante dessa realidade? Há os que se apavoram e passam a ter horror de tudo o que é chinês ou venha da China, reação natural e compreensível que é um belo tiro pela culatra. O ser humano é servo do amor e escravo do ódio, não nos esqueçamos da nossa natureza.

Estamos falando do país mais populoso do mundo e do maior parceiro comercial do Brasil, não há como cortar relações. O governo chinês tem sua visão de mundo, que é moldada pelo partido comunista e, na moral deles, os errados somos nós. Tanto eles estão no direito de tentar nos persuadir quando nós de fazer o oposto. Há vários tipos de relação que podemos manter com a China, submissão não me parece a melhor ideia. O grande desafio para a cultura brasileira, moldada pela bajulação e capitalismo de compadrio, é começar a entender a diferença entre manter um relacionamento e ser capacho.

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