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João de Deus condenado de novo: cadê os cúmplices?
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João de Deus foi condenado mais uma vez. Agora são outros 40 anos em regime fechado por abuso sexual de 5 mulheres. Essa condenação se soma à anterior, de 19 anos em regime fechado, por crimes cometidos contra 4 mulheres. A primeira condenação por por porte ilegal de arma, 4 anos em regime semiaberto.

O médium, mitificado e com ótimas relações com ricos, famosos e poderosos, está pagando por seus crimes. Essa punição será suficiente para evitar outros casos semelhantes? Duvido.

Obviamente o maior culpado por um crime é quem o comete. No entanto, o que é atribuído a João de Deus seria impossível sem uma fiel rede de cúmplices em ação ou omissão, durante muitos anos. Em apenas um processo aparece uma cúmplice, a atual mulher dele, Ana Keyla Teixeira, que foi inocentada da acusação de porte ilegal de arma.

Muitas pessoas tendem a ver o estupro ou assédio sexual como crimes motivados pelo desejo ou descontrole sexual. Não são, são crimes de poder. A sexualidade é apenas a forma perversa de subjugar a vítima da qual lança mão um criminoso que precisa promover o máximo de humilhação possível para sentir-se superior aos pares. Quem sente desejo quer ser desejado. Quem quer demonstrar poder tem prazer com o martírio da vítima. É disso que tratamos aqui.

O caso concreto tem 319 denúncias de mulheres diferentes. Até agora, foram formalizados 11 processos referentes aos casos de 57 vítimas. Apenas os relatos dos crimes cometidos após 2008 são levados em conta, os demais prescreveram e não podem nem ser investigados. Nenhuma vítima é da cidade de Abadiânia, são frequentadoras da casa religiosa surpreendidas com toques inapropriados ou forçadas a fazer sexo. 15 delas eram menores de 13 anos.

Não é possível que algo dessa extensão ocorresse num local lotado de gente o dia inteiro sem a conivência, por ação ou omissão, de quem vivia das atividades de João de Deus.

Conversei com alguns criminalistas e me explicaram que a cumplicidade em um caso como esse é algo muito tênue e subjetivo para fazer parte de um processo penal. Não há dúvidas da cumplicidade, por exemplo, se outra pessoa participa do ato ou da coação da vítima. No caso em que uma pilha de atos criminosos semelhantes só é possível devido ao silêncio conivente dos que poderiam ter impedido fica mais difícil provar nos tribunais.

A impunidade desestimula atos morais em momentos graves. Há pessoas para as quais o medo e o risco são fatores determinantes para conduta moral. Se entendessem que estavam arriscando ir para a cadeia junto, talvez tivessem impedido estupros ou deixado de se omitir nas ocasiões em que puderam agir.

No entanto, creio que o estímulo mais forte ao silêncio cúmplice é a aceitação social. Sempre há, pela via do coitadismo, uma justificativa para quem, podendo agir para evitar um mal, optou por não fazer.

A prefeitura de Abadiânia, onde ficava o centro religioso, estima que 1/5 dos ganhos da cidade vinham desses atendimentos mediúnicos. Um estudo do Sebrae mostrou que 39% da população da cidade teve a vida afetada de alguma forma prática pelo caso. Os setores de hospedagem e artesanato encolheram mais de 80% e o de alimentação foi reduzido à metade.

Coincidentemente, as reportagens feitas no local mostram a população da cidade falando bem de João de Deus e criando teorias sobre como as acusações são forjadas. Nada com base em fatos, obviamente, mas com clichês como "nunca foi condenado antes". Avalie se as pessoas que davam apoio ao trabalho e silenciavam diante dos abusos receberão condenação das pessoas com quem convivem. Jamais. Haverá desculpas ainda mais emocionantes.

Nossa sociedade cultiva um senso moral infantilizado em que o indivíduo não é responsabilizado pelas próprias atitudes se opta pelo conveniente em vez de fazer o certo. O mais eloquente sobre o caráter de uma pessoa é o que ela tolera.

Seria injusto dizer que o brasileiro médio tolera estupros ou abusos sexuais. Geralmente duvida diante da denúncia até que se torne um escândalo tão grande que duvidar mancha a reputação. Mas o brasileiro tolera com muita naturalidade quem cala diante de estupradores e abusadores em série, principalmente se o criminoso for poderoso.

Geralmente apelamos à fraqueza das leis ou à morosidade da Justiça para explicar a vitória da delinquência. Aqui não foi o caso: as ações das autoridades foram infinitamente mais rápidas do que esperamos no caso de ricos e famosos. Podemos fazer quantas leis quisermos e ter os servidores públicos mais dedicados para fazer com que ela se cumpra, será inútil. A sociedade brasileira continua dando todas as condições para que se crie a "tempestade perfeita" na criminalidade e continua fingindo que não tem responsabilidade. Omissão é prata da casa.

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