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eleições 2022
Urna eletrônica| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo

Everildo Bastos Gomes é contador no Maranhão. Tem um instagram badalado para quem é contador, por volta de 5 mil seguidores. Posta de tudo. Tem ali coisas do trabalho, forró, samba, praia, comida bonita, família e até foto sensual com a mulher. É casado e aparentemente apaixonado. Tem duas filhas.

Na última terça-feira, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou a condenação imposta pelo Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão a Everildo Bastos Gomes por propaganda eleitoral antecipada. Vai ter de pagar R$ 5 mil de multa, corrigidos desde a época dos fatos, antes de agosto de 2018.

A manipulação via redes sociais é uma das principais preocupações na manutenção de democracias em todo o mundo. O TSE tem falado muito do assunto e feito muita publicidade. Mas, no julgamento dessa semana, fica claro que a Justiça Eleitoral ainda não tem a menor condição de lidar com redes organizadas. Faltaram fatos centrais e sobrou criação freestyle de regra.

O vídeo postado, vou ser bem franca, não tem nada a ser defendido. Era um desenho do governador Flavio Dino como se fosse um nazista com nariz de Pinóquio. Na legenda, a hashtag #DinovoNÃO e a frase "Fora, ladrão!". Tem mais.

A musiquinha mantinha o alto nível do conjunto da obra:
Dino, Dino, Dino, Dino, Fora Ladrão
Os comunista roubando
O Maranhão tá cheio de rato
Bando de comunista ladrão
Dinovo, Não

O PC do B, partido do governador do Maranhão, é quem entrou na Justiça alegando que a única intenção da postagem seria atingir a imagem do governador. Quanto a isso não temos a menor dúvida. O negócio é que o partido defendeu a tese de propaganda eleitoral negativa antecipada e ganhou no TRE do Maranhão.

No TSE, a salada ganhou mais ingredientes. Os ministros decidiram discutir se aquilo era ou não discurso de ódio. E qual era exatamente a base da discussão? Aparentemente freestyle. O ministro autor do voto dissidente disse que atribuir a pecha de nazista é discurso de ódio. Só que não é, existe uma definição objetiva. Aparentemente, agora existe uma nova: o que o TSE cismar que é discurso de ódio.

A expressão "hate speech" se refere a um recurso de comunicação muito específico, em que a segregação de um grupo é central. Pode ser ofensa, ridicularização, inferiorização, ameaça ou incitação à violência. Só é discurso de ódio se incita os demais contra uma raça, gênero, etnia nacionalidade, religião ou orientação sexual. Nazista não se enquadra nisso.

A votação foi por 4 x 3. O lado perdedor levantou a questão de que, por mais odienta que tenha sido a postagem, ela não é discurso de ódio. A legislação dos Estados Unidos não engloba como liberdade de expressão discurso de ódio. Já a nossa não tem regras claras.

A outra questão é se tivemos aí propaganda eleitoral negativa antecipada ou não. O lado perdedor argumentou que era só um cidadão comum xingando político. Os vencedores argumentaram que hoje há milícias digitais e que, se elas estão chamando adversário de nazista, é propaganda. Eu concordo. O problema é que ninguém se o ocupou de mostrar se o cidadão condenado tem relação com isso ou não. Mais uma vez, freestyle.

Do jeito que ficou o julgamento, um cidadão comum fazer xingamentos pesados contra um candidato antes do período eleitoral é "discurso de ódio" e, portanto, propaganda eleitoral antecipada. A punição é multa. de R$ 5 mil a R$ 25 mil. Avalia se for aplicar a todo mundo que está hoje chamando Lula de ladrão e Bolsonaro de genocida.

Até aqui, parece que bateu na trave. Foi um julgamento apertado e o outro lado, com 3 ministros, estava certo. Não iriam inventar uma nova definição de discurso de ódio e nisso estavam certos mesmo. E também tomariam cuidado ao lidar com falas de cidadãos comuns na internet.

Instagram não é terra de ninguém. O contador que postou tem responsabilidade, mesmo que tenha recebido numa corrente de whatsapp, não seja o autor e outros também tenham postado. Ocorre que levar isso à Justiça Eleitoral quando ele não era candidato a nada parece deslocado. Há tribunais penais e cíveis para tratar do caso.

Agora o plot twist: o contador julgado pelo TSE como um cidadão comum que xingou no Instagram é assessor parlamentar. O deputado que ele assessora esteve no meio de uma batalha gigantesca envolvendo milícias virtuais com um dos principais aliados de Flavio Dino nas eleições de 2018. Estamos em maio de 2021 e o TSE julgou o caso sem perceber do que se tratava. Avalie como será a atuação durante as eleições de 2022.

Everildo Bastos Gomes assessora o deputado estadual Wellington do Curso, que faz oposição ferrenha a Flavio Dino. Nas eleições de 2018, ele foi vítima de uma estrondosa - e debochadíssima - campanha difamatória via Instagram. Acabou abrindo um inquérito sigiloso na Polícia Federal.

À época, o próprio TRE mandou suspender o perfil satírico Wellington Discurso (trocadilho com Do Curso, sacaram?). Ocorre que o email utilizado para criar a conta acabou vazando na imprensa local. Segundo as reportagens, pertencia à mulher de um assessor do Procon. O presidente do Procon veio a ser o deputado mais votado nas eleições de 2018 e levou esse assessor para trabalhar com ele.

O TSE nem percebeu o caso real que foi julgado. Há pontos importantes que precisam ser decididos e não foram. Assessores políticos, quando fazem postagem em suas redes pessoais, devem ou não ser tratados da mesma forma que cidadãos comuns? O julgamento diz que sim, eu tenho dúvidas muito sinceras.

A outra questão não abordada é a utilização e o impacto de milícias virtuais nas eleições estaduais do Maranhão. Whatsapp à parte, é relativamente simples fazer um levantamento de dados das demais redes e determinar se há ou não ação coordenada para manipular a opinião pública. Até hoje a Justiça Eleitoral nem pediu isso e os casos estão sendo todos tratados como isolados.

O julgamento do contador abriu um precedente perigosíssimo. A partir de agora, há uma brecha para qualquer xingamento pesado contra político ser enquadrado em "discurso de ódio" e, automaticamente, em propaganda eleitoral antecipada.

Não fosse suficiente o estrago, o julgamento ainda mostra a total desconexão entre o que está registrado nos processos e a realidade dos fatos. O contador era assessor do principal adversário do político atacado e isso não foi levado em consideração.

Pelo menos o povo que vive de organizar milícia virtual para político ficou feliz. A vida não está fácil para ninguém. Desde aquela live do ministro Barroso com o Felipe Neto eles andavam com a pulga atrás da orelha. Será que a fonte iria secar? Precisariam procurar outro emprego? Agora respiraram aliviados.

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