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Linguagem chula virou a dialética da sociedade – entrevista com Francisco Razzo
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Se podemos falar em grandes vítimas no ano de 2019, são duas: a verdade e o nível do debate público. O posicionamento e o vocabulário que personalidades públicas têm hoje é de nível que se poderia considerar vulgar até para um bordel de beira de estrada. O violento e o grotesco, ícones da falta de domínio próprio e rendição total à autoindulgência já são aceitos como se fossem representação de força e autenticidade. É um movimento mundial.

Considero que, tanto na análise da condição humana quanto do uso da linguagem, Francisco Razzo é único. Com a calma de quem se abriga na arte e na literatura, as criações humanas que independem do fato consumado, ele disseca os pequenos movimentos linguísticos e de corrupção da moral que nos levaram a o que parece ser um caos civilizatório. Se você precisa de paz e foco para o seu 2020, recomendo vivamente a entrevista.

"Nós temos grande expectativa de que a razão seja a capacidade humana que norteia os rumos da nossa política, mas não é assim. No meu livro 'A Imaginação Totalitária', eu mostro que a imaginação, a capacidade de imaginar, ela tem um grande contributo - e é capital - para vincular as nossas expectativas com relação ao que nós somos, como povo, como comunidade, como sociedade. Não é a racionalidade." - diz Francisco Razzo.

Se a racionalidade possibilita a existência de argumentação no debate político, é a imaginação que dá a esperança. Para o professor e escritor, meu colega na Gazeta do Povo, em 2019 o cenário político foi dominado pela capacidade humana da imaginação e essa é uma das explicações para a aparente normalização da violência. É a imaginação quem elabora um simulacro de justificativa racional para a violência política, o que é inaceitável passa a ser possível: anular o outro ou calar o outro.

Muitos grupos que se expressam com uma agressividade que seria constrangedora fora dessa sistemática acabam se reunindo pela internet. As redes sociais, em tese, serviriam para fortalecer nossos vínculos sociais. Contei ao Francisco Razzo que o termo mais buscado no Google em 2019 foi o deprimente "como fazer as pessoas gostarem de mim".

"Certamente, elas estão sentindo, do ponto vista psicológico, extremamente desamparadas na sua vida social.", analisa.

Aí temos um paradoxo interessante: a internet nos fornece inúmeros contatos, mas não nos fornece laços sociais reais e isso merece atenção: uma sociedade fragmentada de submete com muito mais facilidade a qualquer tipo de poder político. Não tem como se articular para exercer o poder e pode se iludir de que está fazendo isso enquanto é controlada pelo poder político.

Apenas num universo fortemente dominado pela imaginação a negação da condição humana pode ser relacionada a conservadorismo. Em vez de reconhecer a própria fragilidade humana, muitos dos que se dizem conservadores posam como se não tivessem crise nenhuma e soubessem todas as fórmulas para solucionar os problemas do mundo. Francisco
Razzo é crítico com a substituição do ceticismo pelo triunfalismo entre os que se dizem conservadores: "Para mim, é uma das grandes fontes que gera a violência".

A CRISE DA LINGUAGEM

"O que forma o tecido social é a linguagem", diz Francisco Razzo.

A linguagem é o que une a sociedade e pauta as ações daquele grupo. Os grupos identitários, por exemplo, têm uma preocupação enorme de transformar o vocabulário. "O uso da linguagem é o que prepara a nossa imaginação, é o que prepara o nosso comportamento", explica.

"A crise política é sintomática à crise da linguagem e, vou um pouco mais longe, ela também faz com que não percebamos mais a distinção entre o universo daquilo que é privado e o espaço público".

É simples entender essa mistura do universo público com o privado olhando as redes sociais e as diversas manifestações patéticas de ofensas feitas por adultos. O que são sentimentos legítimos e geralmente eram compartilhados na nossa esfera de convivência íntima passaram a ganhar o espaço público. Esses temas atraem tanto a atenção das pessoas que os assuntos dignos do debate público acabam passando para um segundo plano.

O "ORGULHO" CONSERVADOR

"Você não vai resolver o problema da angústia e do sofrimento humano com fórmular políticas porque você não vai resolver o problema da angústia e do sofrimento humano com fórmula nenhuma".

Francisco Razzo vê com ceticismo e pessimismo o fato de tantas pessoas terem orgulho de dizer que são conservadoras e cristãs usando um vocabulário e tendo um comportamento que não fazem parte nem do viver conservador nem do viver cristão, já que ambos reconhecem a complexidade, os sofrimentos e a fragilidade humana. "Esse pessoal acha que vai resolver a coisa na canetada, na simplicidade de fórmulas".

A POLÍTICA DO ANTAGONISMO

Há diversas fórmulas de ver a política. Uma delas é a da criação de consensos em torno de temas que sejam comuns a diversas pessoas e possibilitem um avanço da sociedade. Muito chata. Em época de espetacularização da política, torna-se muito mais interessante o que convencionamos chamar de "nós contra eles".

Não se trata de algo atual. Francisco Razzo traçou na entrevista um caminho que atravessa séculos em que vários filósofos e ideólogos, tanto de esquerda quanto de direita, delineiam a política feita de pólos opostos, de inimigos. No caso brasileiro, instaurou-se uma disputa ferrenha entre o que se convencionou chamar neste momento histórico de "esquerda" e "direita" sem que tenham exatamente os princípios ideológicos. Ambos os lados querem empurrar para o oponente a invenção do "nós contra eles".

Nas manifestações de 2013, a esquerda conseguiu momentaneamente capitalizar as insatisfações das pessoas, mas deixou escapar que poderia pagar o preço da violência que tomou conta dos episódios. "Propicia o surgimento de uma direita que foi reativa a isso". As pessoas buscam proteção contra o risco dessa violência se espalhar naqueles que, supostamente, têm força e agressividade suficientes para conter essa violência. Permitir que as manifestações de 2013 descambassem para a violência foi um erro de cálculo da esquerda, que não enxergou estar criando a brecha a ser ocupada por um grupo igualmente violento, mas do pólo oposto.

A CURA

Como colocar novamente o gênio dentro da garrafa? Muita gente cansada da polarização irracional e dos debates agressivos se tem feito essa pergunta. Francisco Razzo fez uma opção, o "mergulho estético".

"Eu sempre tive a expectativa de que a solução de grandes problemas não pode passar pela crença no Estado, no poder, etc. Mas passa pela arte, pela literatura sobretudo. Quando eu me sinto preso na apoteose das certezas, eu corro para a literatura", explica.

A literatura nos fornece uma experiência que é impossível um ser humano experimentar ao longo de sua existência, seja pelo exercício imaginário dos personagens ou pela convivência com as ideias e a linha de raciocínio dos grandes autores da humanidade. É por meio do mergulho na literatura que voltamos nossa atenção para aqueles que são os dramas humanos genuínos:

"Nós precisamos da misericórdia de Deus, do amor entre as pessoas. O amor e a misericórdia são realmente o exercício e a experiência humana para que a gente fuja da tentação do poder", conclui Francisco Razzo.

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