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Luanda Leaks: gigantes do mercado deram apoio à corrupção em Angola
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Foi o jornalismo que provocou o impensável em Angola: o governo bloqueou os bens da mulher mais rica da África e de Portugal, Isabel dos Santos, filha do ditador José Eduardo dos Santos. O novo governo, de João Lourenço, é do mesmo partido do anterior, o MPLA, Movimento Popular pela Libertação de Angola, tratado com um misto de ilusão e poesia pela esquerda brasileira. Fundado pelo poeta e médico Antonio Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola pós-colonização portuguesa, é o berço político do "arquitecto da paz", ZeDu, como era chamado o ditador pelas ruas do país.

É verdade que José Eduardo dos Santos conseguiu arquitetar a paz num país que viveu uma guerra civil sangrenta. Um lado contava com o apoio dos guerrilheiros cubanos e o outro tinha reforço dos mercenários sul-africanos. A ditadura implacável com quem questiona o regime não é percebida dessa forma pelo angolano médio, cuja vida pessoal e familiar é marcada pela chaga das guerras. Há eleições, ainda que fraudadas, anda-se na rua, não há bombas, estão retirando as minas terrestres. Se a população analfabeta e miserável se ilude quanto à liberdade, sabe exatamente a diferença entre guerra e paz.

Há uma diferença marcante no convívio com corruptos angolanos e brasileiros: a hipocrisia. O corrupto brasileiro geralmente banca o santo enquanto os angolanos se sentem merecedores do que estão recebendo e a maioria diz isso claramente.

Nesse ponto, Isabel dos Santos é mais parecida com os nossos do que com os seus. Construiu desde 1992 com o marido Sindika Dokolo um império de mais de 400 empresas em 41 países e cultiva, principalmente em Portugal e Angola, a imagem de meritocracia. Coloca-se como mulher de negócios muito bem formada em universidades européias, uma lutadora pelo progresso de seu país e da África, que venceu sem receber ajuda do pai. Nas ruas de Angola, o disfarce é motivo de piada, sempre às escondidas porque pode dar problemas. Mas colou muito bem na Europa, Estados Unidos e América Latina.

O levantamento de centenas de milhares de documentos não cairá como uma bomba em Angola, onde a influência do governo para favorecer Isabel dos Santos foi tão descarada que faz parte do que se considera normalidade. Será, para os angolanos, a confirmação de algo que muita gente comentou durante muitos anos. A filha preferida do antigo ditador tinha forte influência em tudo o que importa no país: petróleo, diamantes, comércio, telecomunicações e infraestrutura. Agora, 715 mil documentos revelam como o patrimônio bilionário foi construído às custas da miséria angolana.

O que surpreende no caso não é a corrupção de um ditador africano de regime socialista, mas como gigantes do mercado ignoraram as próprias regras de compliance para ajudar a esquentar a fortuna desviada.

Os documentos foram divulgados pelo ICIJ - International Consortium for Investigative Journalists - com jornalistas investigativos afiliados no mundo todo. O material está sendo divulgado na íntegra pelos brasileiros que fazem parte da iniciativa. A quantidade impressionante de documentos foi obtida pela PPLAAF – Plateforme de Protection des Lanceurs d’Alerte en Afrique - fundada em 2017 por advogados, ativistas anticorrupção e jornalistas investigativos para proteger delatores de crimes do colarinho branco na África.

A fortuna de Isabel dos Santos é estimada em US$ 2 bilhões. O atual governo angolano diz que ela e o marido desviaram US$ 1,1 bilhão dos cofres públicos do país, acusações que são negadas. Se os grandes capitalistas do ocidente e as instituições financeiras de países sérios querem distância de ditadores africanos, neste caso foi criada uma persona pública que abriu portas importantíssimas como o Fórum de Davos, o Fórum Econômico Mundial, a London Business School e o jetset de Hollywood e Cannes.

Obviamente filhos de ditadores africanos usam suas fortunas para conseguir benesses e acesso, mas a relação com eles é envergonhada para os que têm prestígio e causam repulsa na população. Lembremos o caso de Obiang, ditador da Guiné Equatorial, e o financiamento a uma escola de samba brasileira. Ou a rede de relações do filho dele, Teodorín, com ricos e famosos do Brasil: é tudo escondido. Isabel dos Santos era algo diferente, conseguiu limpar da própria imagem o ranço da realidade e vestir uma fantasia de mulher de negócios africana com a qual ricos e famosos vivem tirando fotos.

É um caso lapidar em que o liberalismo à la carte ou o compliance à la carte são fundamentais para manter uma ditadura socialista. Imaginava-se que as facilidades e cumplicidades eram apenas de governantes amigo. Não eram: o mercado deu sua cota.

Ao longo dos anos, diversas instituições bancárias pararam de trabalhar com a família de José Eduardo dos Santos porque ninguém conseguia justificar de forma verossímil a origem do patrimônio. Alguns chegaram a fazer denúncias a órgãos reguladores, mas a maioria não, apenas negava qualquer tipo de negócio ou vínculo. No entanto, algumas das maiores empresas ocidentais de contabilidade, consultoria e advocacia foram fundamentais para legalizar o dinheiro tirado dos cofres públicos angolanos.

O mais assustador é que os papas mundiais da auditoria e compliance estão no rol de quem continuou fazendo negócios com a família do ditador angolano mesmo depois que a maior parte do mercado havia pulado fora e diante de transgressões a regras internas e dos mercados norte-americano e europeu. O império de Isabel dos Santos só foi construído graças ao apoio durante muitos anos de empresas como PwC, KPMG e Boston Consulting Group, entre outros.

Isabel dos Santos não respondeu ao pedido de entrevista feitos pelos jornalistas investigativos que examinaram os documentos, mas falou à BBC. Garante que é inocente, reforça a imagem de mulher de negócios competente e fala em perseguição política: "as autoridades angolanas embarcaram numa caça às bruxas muito, muito seletiva, que serve o propósito de dizer que há duas ou três pessoas relacionadas com a família dos Santos", declarou.

O fato de ser filha do ditador angolano e, ainda assim, ter negócios com empresas estatais é visto com naturalidade, bem diferente da aura de confissão de culpa dada pela reportagem original. "Há alguma coisa de errado numa pessoa angolana ter um negócio com uma companhia estatal? Penso que não há nada de errado, tem de perceber que não se pode dizer que por uma pessoa ser filho de alguém é imediatamente culpada, e é por isso que há muito preconceito", justifica Isabel dos Santos.

O mundo sabe das mazelas produzidas por ditaduras socialistas, mas parece não querer ver que a roubalheira dos autocratas seria impossível sem os generosos serviços oferecidos por gigantes do livre mercado, com sede no ocidente. Aparentemente, as regulações de vários países sobre lavagem de dinheiro ignoram a participação de seus especialistas na manutenção de uma indústria off shore dedicada a lavar dinheiro tungado dos cofres públicos de nações miseráveis.

Uma hora a conta chega. Parece ter chegado para a família dos Santos e alguns de seus principais apoiadores, empresas especialistas em compliance e auditoria do ocidente. O mais chocante é que esses símbolos da transparência e do capitalismo foram, ao fim e ao cabo, mais importantes para a construção da fortuna do ditador socialista do que todo o apoio socialista que puderam obter no mundo.

É o resultado certo da lógica de mundo regido pela eficiência em gerar lucro: colocam-se os princípios de lado e o tiro sai pela culatra.

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