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Mais Médicos é escravidão moderna?
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Houve quem questionasse nas redes sociais a existência de uma declaração da ONU classificando como escravidão moderna o trabalho de médicos cubanos no exterior. Motivo? Vivemos a era da pós-verdade, em que opiniões ou declarações sem nenhum embasamento podem acabar comparadas a fatos. Fui atrás do documento, ele existe e condena a prática da ditadura cubana em diversos países além do Brasil.

É um movimento interessante, já que agências da ONU chegaram a intermediar o envio de médicos cubanos a diversos países. Este documento é assinado conjuntamente pela Relatora Especial sobre as formas contemporâneas de escravidão, suas causas e consequências, por Urmila Bhoola e pela Relatora Especial sobre o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, Maria Grazia Giammarinaro.

Os relatores especiais não fazem parte dos quadros oficiais da ONU, não atuam como consultores nem recebem salários. São selecionados em votações entre os países nos diversos comitês e podem falar pela ONU durante o mandato, que varia de uma relatoria para outra mas tem duração de poucos anos. É uma posição de prestígio internacional, significa que diversos países com culturas e visões diferentes a consideram especialista em um tema que é desafiador no mundo atual.

É importante deixar claro que o documento não fala especificamente do Mais Médicos, mas de todo o contexto de envio de médicos cubanos para o exterior desde 1963. 600 mil profissionais já prestaram serviços em 160 países, de acordo com o relatório e atualmente 30 mil estão trabalhando em 37 países estrangeiros. O documento também cita o trabalho de outros profissionais, como professores, engenheiros e artistas.

As conclusões das relatoras têm base nas denúncias da ONG Prisoners Defenders, fundada por um egresso de Cuba que virou empresário de sucesso na Espanha. Foi apresentada tanto à ONU quanto ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, que acusou recebimento mas ainda não deu resposta sobre a pertinência das acusações.

Como o documento compila mais de 100 casos de médicos que prestaram ou prestam serviços fora de Cuba, as relatoras firmaram posição sobre os fatos ali relatados e fizeram um documento pedindo respostas à ditadura cubana. Os países não são obrigados a responder e Cuba não respondeu no prazo de 60 dias.

"Las condiciones de trabajo reportadas podrían elevarse a trabajo forzoso, según los indicadores de trabajo forzoso establecidos por la Organización Internacional de Trabajo. El trabajo forzoso constituye una forma contemporánea de esclavitud." - diz o relatório. E é aí que surge todo o questionamento nas redes sociais. As relatoras da ONU não disseram que se trata de trabalho forçado, uma forma de escravidão contemporânea. Elas perguntaram ao governo cubano se realmente aquela situação relatada era real e informaram que, caso tudo se confirmasse, é uma situação que pode até ser considerada escravidão.

Debater sobre a tradução e a existência do carimbo "escravidão" no trabalho dos médicos cubanos é uma estratégia para fugir da principal discussão: a ONU condena a prática porque os profissionais são explorados e perseguidos pela ditadura.

Mistura-se essa discussão com a da falta de condições de saúde ou de profissionais em áreas pobres do Brasil e do mundo. São dois tipos diferentes de sofrimento humano, o dos pacientes desatendidos e o dos médicos explorados. Não se trata de olimpíada de sofrimento ou sina, há duas situações que precisam ser resolvidas. Fora o alinhamento ideológico ou o vínculo afetivo com a ditadura cubana, não há justificativas para fazer alguém entender que o único meio de dar atendimento de saúde a pessoas pobres é arrumar uma ditadura disposta a esfolar quem se formou em medicina.

O próprio documento da ONU pesa as duas questões de forma muito lúcida. "Sem dúvida as missões médicas levaram tratamento médico a um grande número de pessoas que não teriam acesso ao sistema de saúde de outra forma. Ainda assim, queremos expressar nossa preocupação pelas condições de trabalho e de vida que estariam afetando os médicos cubanos enviados ao exterior para prestar serviços".

As relatoras se referem a pontos específicos, que classificam como presunções, e para os quais pedem uma resposta do governo cubano:

1. Apesar da participação nos programas ser oficialmente voluntária, muitos médicos se sentem pressionados a participar porque temem represálias do governo de Cuba.

2. Em muitos países, os médicos não têm contrato de trabalho ou não recebem cópia deles.

3. O governo de Cuba fica com a maior parte dos salários dos médicos, em alguns casos com fatias entre 75% e 90% e o restante não é suficiente para viver com dignidade no país estrangeiro. Em vários casos, o governo "congela" o salário para que o profissional receba quando voltar a Cuba, mas acaba não pagando a ele.

4. A jornada de trabalho é de 48 horas semanais mais 16 de plantão, o que significa um excesso e exploração laboral.

5. A liberdade de movimento dos trabalhadores cubanos nos países estrangeiros seria restrita e vigiada por funcionários do governo de Cuba.

6. O direito à privacidade é limitado pelo controle de comunicações e de relações dos médicos com cubanos e estrangeiros.

7. Os profissionais são informados que podem voltar a Cuba em férias uma vez por ano, mas isso pode ser negado como forma de castigo.

8. Se um profissional decide abandonar o trabalho no exterior deve regressar imediatamente sob pena de condenação pelo artigo 135 do Código Penal de Cuba a prisão de 3 a 8 anos. Os que são considerados desertores são proibidos de voltar a Cuba e suas famílias sofrem represálias. Muitos médicos que fizeram parte do Mais Médicos, cancelado em 2019, não sabem se voltam ou não com medo da reação da ditadura Cubana, apesar de o governo ter garantido que a volta está liberada.

9. Muitos profissionais disseram receber ameaças regulares por funcionários cubanos nos países estrangeiros e mulheres médicas relatam assédio sexual nas missões internacionais.

As relatoras da ONU fizeram 5 solicitações à ditadura de Cuba:

1. Providenciar informações ou comentários adicionais sobre as alegações.

2. Informação detalhada das medidas que Cuba está adotando ou planejando adotar para garantir aos médicos que trabalham no exterior condições dignas de vida e trabalho.

3. Informar como o governo evita a separação familiar prolongada entre os médicos e os familiares que ficam em Cuba.

4. Informar se Cuba tem a intenção de assinar o P029, Protocolo de 2014 sobre o Convênio de Trabalhos Forçados de 1930.

5. Informe os mecanismos de relcamação para que os profissionais cubanos denunciem abuso e exploração.

O protocolo de 2014 não é da ONU, é da OIT, Organização Internacional do Trabalho, que não é formada somente por governos, mas também por representantes de trabalhadores e empregadores. Cuba não assinou e o Brasil também não. O prazo para que a ditadura de Cuba respondesse terminou no último dia 6 de janeiro. Não há sanções para a falta de resposta mas, nesses casos, a ONU considera o princípio “qui siluit quun loqui et decuit et protuit, consentire videtur ”, ou seja, se quem pode e deve se pronunciar não o faz, devemos concluir que consente. Dessa forma, se conclui que o governo cubano não nega as acusações.

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