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Mc Gui é premiado pela maldade que fez
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Muita gente não sabia quem era o Mc Gui até uns dias atrás em que sua fama precedeu seu talento artístico na citação pela grande mídia. A participação no Domingo Legal, nas Chiquititas e no reality show Dancing TV, da Rede Record, foi menos eficiente para torná-lo conhecido do que a postagem zombando de uma criança na Disney. Óbvio que ele tem o direito de mergulhar na vilania e humilhar uma criança sem razão - em nenhum momento ele foi impedido. A questão é que vai enfrentar consequências.

Na era das redes sociais, tem se tornado comum a confusão entre censura e inimputabilidade. Censura é sempre prévia e necessariamente vinda do Estado, como regra. Inimputabilidade é ferir o direito do outro e não sofrer consequências, uma reivindicação de muito espertinho por aí.

Confesso que não tive estômago para ver o vídeo todo do Mc Gui humilhando a menininha para seus milhões de seguidores. Tenho dificuldades para encarar o fato de algumas pessoas realmente sentem prazer com o sofrimento alheio, como fica claro nos primeiros segundos da filmagem. Quando tem criança envolvida, pior ainda para mim. Mas, enfim, não creio que alguém precise ir até o fim para saber que o evento não tem justificativa.

A maioria das famílias brasileiras gostaria de poder fazer uma viagem dessas, para a Disney, com seus filhos. É até um sonho para algumas pessoas, conheço muita gente que conseguiu realizar depois de adulto. O que leva alguém que lutou na vida e passou por sofrimentos familiares, como esse Mc Gui, a chegar num momento desses e, em vez de aproveitar, tentar estragar o dia de outra pessoa? Sinceramente, não sei, mas estamos cercados de pessoas que agem assim.

Guilherme Cauê Castanheira Alves tem 21 anos de idade e começou a compor como brincadeira, aos 10, com o irmão. Ficou famoso com a música Ela Quer, de 2013, que se tornou um hit do gênero "Funk Ostentação", uma vertente do funk inteiramente dedicada a uma espécie de idolatria dos bens materiais num nível de fazer inveja a Wall Street pelo foco e pela superficialidade. A letra da música fala por si só de Mc Gui e seus milhões de fãs:

Ela Quer

Ela quer minha Lamborghini
Ela quer o meu Camaro
Ela só quer saber de tomar
O champanhe e do mais caro
Tamo chegando em Guarujá
As novinha no mó debate
Pra ver quem vai dar o peão
Comigo no meu iate
Daqui a pouco eu vou encostar
Minha Lamborghini na garagem
Que as novinha ficam louca
Quando eu pego minha Ferrari
Tá 40 grau e a Juliet tá na cara
Desfilando com o cordão de ouro
Lá no calçadão da praia
Pra finalizar
Nós guarda os carro na na garagem
Sobe lá pra sauna
E relaxa na hidromassagem
Ela quer, ela quer
Meu Camaro e meu iate
Ela quer, ela quer
Minha Lamborghini e minha Ferrar
i...

Não é pelos princípios e empatia que a sociedade brasileira recompensou com milhões Mc Gui e seu irmão. Em 2013, a dupla já faturava R$ 120 mil por mês e fazia uma média de 50 shows por mês. Em abril de 2014, o irmão Gustavo Matheus Castanheira morreu após uma overdose de cocaína. No mesmo ano, Mc Gui foi indicado para 3 prêmios musicais nacionais: Meus Prêmios Nick, Prêmio Multishow de Música Brasileira e Capricho Awards.

A trajetória ascendente, milionária e focada em ostentação parece ter tomado um baque com a história do vídeo. Ele gravou um outro vídeo que foi descrito como "pedido de desculpas", mas não é. Trata-se da versão covarde, a justificação. Não se vê ali real arrependimento e, creio eu, nem a plena compreensão do que um ato daqueles significa na vida adulta e com o adicional de milhões de seguidores. Tenta dizer que foi descontextualizado, exagerado, levado àquilo, enfim, a emenda ficou pior que o soneto.

Vários dos contratantes do Mc Gui, que topavam ligar suas marcas àquele tipo de música e conjunto de valores, resolveram se afastar e cancelar os shows. Sinceramente, tenho muita dúvida se a ideia de quem fez isso é manter distância da crueldade e falta de empatia ou do escândalo.

Um episódio que me faz questionar ainda mais se as pessoas realmente acham errado massacrar as outras por esporte - como fez o Mc Gui - ou sentem a necessidade de afirmar as próprias virtudes pelo simples fato de apontar o dedo é o desdobramento mais bizarro nas redes sociais: o ataque a outro Mc. Isso mesmo, cidadãos comuns de todo o Brasil fizeram ataques em massas, com xingamentos, na página de alguém que não tinha nada com o peixe, o Mc Guimê.

Como pode uma pessoa que ataca outra sem razão - o Mc Guimê no lugar do Mc Gui - se dizer genuinamente revoltada porque alguém atacou uma pessoa sem razão? Arrisco a dizer que estamos medindo virtude pelo nível de ataque público que alguém faz, não pelas ações da pessoa.

A família do Mc Gui está investindo pesado agora em atacar essa crise de imagem por duas vertentes: vitimização e reparação. A primeira são os relatos de pais e parentes dizendo que o funkeiro não pára de chorar, que ficou muito mal depois dos ataques, que não esperava tudo aquilo, enfim, que não pode ser tratado como o adulto milionário e famoso que é. A outra tentativa é a de localizar a menina que foi ridicularizada por ele para oferecer algum tipo de reparação e pedir desculpas.

Nesse ponto entra outro efeito da falsa virtude, aquela adquirida pela mera tentativa de demonstrá-la na internet, sem nenhuma relação com o caráter da pessoa: a campanha para que a menina virasse princesa da Disney. A hashtag #JullyPrincessInDisneyworld esteve entre os trending topics durante todo o dia de ontem. Minha pergunta é: de onde tiraram que o nome da menina é Jully? Alguém falou com ela? Vi algumas publicações relatando tanto o nome quanto um diálogo em que a mãe teria dito que a menina ficou abalada, todas sem o link do original ou referência da fonte primária da entrevista.

Podem procurar: não existe essa entrevista com a mãe da menina ridicularizada e ninguém tem certeza de que ela sofreu bullying. Isso é má-fé, é usar informações não checadas - falsas ou inventadas - para mexer com os sentimentos mais fortes das pessoas e alarmá-las em troca de cliques. A imprensa que embarca nisso tem sua culpa sim. E não deixemos de lado a vilania das plataformas como Twitter, Facebook, Instagram e Google, cujos donos ganham dinheiro com isso, desfrutam de fortunas nababescas e dão uma de Mc Gui quando flagrados nessa forma nefasta de lucro, alegam estar fazendo muita coisa mas não conseguindo conter os efeitos danosos. Do dinheiro vindo desses efeitos danosos eles não abrem mão.

O pior de tudo, no entanto, é que o Mc Gui ganhou mais seguidores nas redes sociais após o vídeo, apesar de todo mundo saber do evento e de várias personalidades desse universo - Felipe Neto, Jojô Toddynho e Felipe Castanhari - terem feito vídeos de repúdio.

Ele perdeu muitos seguidores sim, mas o balanço é um estudo sobre o padrão moral do brasileiro, principalmente quando fica diante da fama e notoriedade. Mc Gui ganhava uma média de 400 e poucos seguidores por dia no Instagram, plataforma em que postou o vídeo com a menina, segundo o site de monitoramento Social Blade. Depois do vídeo, ganhou mais de 85 mil. Claro que perdeu muita gente também, mas terminou com um balanço positivo de mais de 2 mil seguidores em um dia, 5 vezes o que ele costumava conquistar num dia normal.

Não é o único caso em que muitas pessoas resolvem seguir alguém nas redes sociais depois de um escândalo. A Mc Mirella foi acusada em abril de ter aliciado uma menina menor de idade para prostituição. Negou as acusações. As investigações prosseguem. O escândalo, mais uma vez, rendeu bons frutos para quem o causa: alta no número de seguidores. Num mercado publicitário em que princípios e credibilidade raramente contam, até porque são mais complexos para medir, o valor de Mc Mirella e Mc Gui sobe com os eventos. Graças a quem? Ao público: Vox Populi, Vox Dei.

A música superficial do Mc Gui não faz sucesso por acaso nem é obra da sorte que ele ganhe tantos seguidores após um episódio vergonhoso desses. Nossa sociedade, principalmente após as redes sociais, está se acostumando a substituir credibilidade por notoriedade. Credibilidade é a capacidade de, por um longo período de tempo, viver da forma como prega. É assim que o discurso de alguém se torna crível, digno de que acreditemos. Quando esse valor passa a ser substituído por notoriedade, ou seja, o tanto de gente que se alcança com uma mensagem qualquer, geramos toneladas de Mcs Gui. Não temos o direito de demonstrar surpresa com o resultado.

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