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Mensalidade em universidade pública: como esculhambamos todas as discussões
| Foto: Jonathan Campos/ Arquivo/ Gazeta do Povo

Se esta é a primeira discussão que você vê sobre pagamento de mensalidade em universidade pública no Brasil, significa que você faz parte da ala dos novinhos. Aguarde mais uns anos que você verá outra, ainda mais rasa e esculhambada do que essa. Não pense que não é possível, eu também pensei a mesma coisa e mordi a língua. Estamos finalmente diante de um projeto ainda pior que os da minha juventude.

Eu sou filha da universidade pública. Jamais teria feito um curso superior se tivesse de pagar por ele. Mesmo não tendo de pagar, quase não podia fazer. Acumulava dois empregos em seguida para ajudar em casa. Depois que meu pai morreu, no meu segundo ano de faculdade, a coisa apertou mais ainda. Felizmente, por essas obras do destino, aos 19 anos eu já era apresentadora da Jovem Pan, do jornalístico da tarde, São Paulo Agora. Era um salário que bancava uma família.

Naquela época, muitos parlamentares eram partidários de uma tese ressuscitada hoje pela deputada Tábata Amaral e que parece moralmente correta. Alunos de faculdades públicas com salários altos devem retribuir. Parece lógico? Sim. Vamos ao meu caso que é de tantos outros "arrimos de família". Meu salário era alto para mim, mas eu sustentava a família toda. Eu teria de pagar a faculdade - ou seja, teria de sair da faculdade - e gente sustentada pelos pais não pagaria porque fazia estágio e ganhava uma miséria.

A realidade é complexa e fazer políticas que realmente sejam justas partindo de uma regra simplista ou moralista não tem como dar certo. Partimos aqui de um problema que muitos apontam e que uma hora vamos ter de enfrentar: não é possível o desequilíbrio que temos no investimento em ensino superior e básico.

É voz corrente que só o rico chega à universidade pública, que deveria ser paga. O restante do ensino não deveria, mas deveria ser de qualidade. Raciocínio bem intencionado, falando na real necessidade de melhorar a educação básica para termos um país mais justo e de mais oportunidades. Só não sei se fazer gente de 17 anos pagar para estudar vai ser uma boa ideia mesmo.

Verdade seja dita, a maioria dos brasileiros não vai fazer nem ensino técnico nem faculdade de qualidade se precisar pagar. Isso de pagar depois também não vai funcionar e já vimos com o ProUni. Funciona bem para quem cobra os juros, mas quem pegou o empréstimo entra em desespero. Meses atrás, Bolsonaro até assinou uma MP para perdoar os endividados porque não tem solução para essas dívidas.

Minha amiga Daniela Alves, professora universitária especialista em políticas públicas, dissecou a lei que mobilizou discussões apaixonadas nas redes sociais. Mais uma vez, a discussão nunca foi sobre a lei que estavam votando, mas sobre a moralidade. A lei em si não traduz as ilusões dos contrários e muito menos dos que a defendem. É a famosa junção de nada com coisa nenhuma.

O enunciado da coleta de assinaturas é sensacional: "quem pode paga e quem não pode não paga". Imagine que o pessoal da sua firma vá a um restaurante e, na hora de dividir a conta, essa regra seja colocada em vigor. Qual a chance de dar certo? Estamos falando de uma única cobrança num lugar em que todo mundo se conhece. Pense na hora de comprovar isso.

Bom, mas o projeto deve definir algo a esse respeito, quem pode ou não pagar uma mensalidade. Não, ele não define e ainda dá um tapa na cara da sociedade. Cada universidade pública criará uma comissão interna que vai definir os critérios de quem tem ou não condição de pagar a mensalidade. Se apresentar comprovante de residência no Serasa fica automaticamente excluído ou não?

Eu fui masoquista o suficiente para falar de "formar comissão" para conhecidos que trabalham em faculdades públicas. Uma me amaldiçoou porque cuspiu todo o café com leite que havia acabado de preparar. Riu umas duas horas seguidas da ideia. Não é pessimismo da Iara, minha seguidora no Twitter, é experiência. Alguns disseram que as comissões não conseguem nem identificar se alguém é negro, avalia identificar se tem condições de pagar algo.

E qual seria a mensalidade dessa universidade pública? Pergunto porque hoje tem faculdade cobrando todo tipo de mensalidade. É igual mulher comprando bolsa, pode custar qualquer valor entre R$ 10 e R$ 150 mil que vai ter. Como seria definido o valor, qual a forma de arrecadação e, principalmente, o que seria feito com esse dinheiro? O projeto não prevê.

Um órgão do Poder Executivo definiria valores mínimo e máximo de mensalidade. E quem decidiria qual curso tem qual mensalidade? Seria pela lei da oferta e da procura? Se for assim, nunca mais vai ter médico de classe média no Brasil. Atenção você que é rico e tem filho burro, finalmente chegou um projeto que vai desalojar a peça do seu orçamento mensal.

Tudo que é faculdade de período integral a classe média consegue fazer no máximo de graça em outra cidade pagando a república, o material e a comida. E isso já é um peso enorme. Imagine que essas faculdades, as mais procuradas e longas, passem a cobrar mensalidade. Acabou a fantasia de se matar de estudar no cursinho e entrar, daí passa a ser artigo de luxo mesmo.

"Ah, mas o pobre vai ter a vaga dele garantida porque o projeto diz". O que é pobre para você? E para o projeto? E para os deputados? Ninguém sabe e também não interessa porque cada universidade vai decidir individualmente quanto cobra e de quem. Eu só não sei o que esse pessoal vai fazer com o dinheiro se aprovarem essa história porque o projeto também não prevê. Acho que guarda tudo nos escaninhos dos professores, sei lá.

O salário médio do brasileiro é de R$ 2,4 mil. Em tese, todo mundo que ganha mais do que isso "pode pagar" então? Mais que isso, a ideia de que cobrar mensalidade vai equilibrar financeiramente o nosso sistema de universidade pública é pueril. Estamos novamente diante da tentativa de enxugar gelo, fazer simplificações grosseiras e vender ao povo moralismo de quinta categoria em ano eleitoral. E isso tanto dos favoráveis quanto dos contrários ao projeto.

Houve uma micareta estudantil na Câmara dos Deputados protestando contra algo que eles imaginam ser esse projeto, mas que não é. Estavam lá falando do fascismo que se opõe à educação pública de qualidade para todos. Daí ouviam que hoje o pobre paga para o rico estudar. Então diziam que daqui a pouco vão privatizar até o SUS. Enfim, o velho circo eleitoreiro que a gente paga todo ano e sai ainda mais caro em ano de eleição.

O provável é que o projeto tenha como efeitos práticos apenas aqueles que já teve. Fez propaganda eleitoral para o autor, o relator, o cordão dos bajuladores e a multidão de apedrejadores. Ninguém, aliás, falando do projeto em si, todos falando de projeções morais sobre educação e riqueza. Algo muito curioso para quem é regiamente pago com dinheiro de gente miserável para trazer soluções práticas.

Há uma multidão empolgadíssima em encampar um lado da briga e açoitar o outro. E também tem um pessoal que ouviu o galo cantar, não sabe onde mas chegou para xingar a Tabata Amaral. Poucas coisas são mais eloquentes sobre a educação brasileira do que esse circo. As pessoas querem ditar regras morais e fazer justiça social sem saber o que vai cobrar, de quem, como nem para onde vai o dinheiro. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome.

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