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Miss Venezuela: luxo e beleza como apoio da ditadura
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No imaginário brasileiro, a Venezuela está resumida a miséria, confrontos e gente fugindo do país. Culpa nossa, dos jornalistas, ao insistir em mostrar à exaustão as cenas que o ditador Nicolás Maduro teima em negar e esconder. Numa ditadura que viola sistematicamente os direitos das pessoas, obviamente a maioria vive no caos. Mas há uma minoria que, ao aderir ao regime, vive no luxo.

Os concursos de beleza estão para a Venezuela assim como o futebol está para o Brasil. É uma paixão nacional e temos certeza da nossa vocação para vencedores.

Hugo Chávez se elegeu em 1998 e começou seu governo em 1999. Somente este ano, 20 anos depois da implantação do regime e vários anos depois de uma crise humanitária reconhecida internacionalmente, o Miss Venezuela baixou um pouco a pompa e circunstância. Mas nem assim foi cancelado ou deixou de existir.

A tradição da beleza venezuelana remonta à década de 70 quando o cubano Osmel Sousa chega ao Miss Venezuela. Um dos pioneiros mundiais na crença das cirurgias plásticas em série para construir rainhas da beleza, ele se tornaria o coordenador do concurso em 1981. Pouco importa se concordamos ou não com as teses e métodos dele, é quem mais fez ganhadoras do Miss Mundo. Era chamado de "O Czar da beleza".

Em fevereiro deste ano, ele renunciou à coordenação do Miss Venezuela depois de denúncias em série feitas por várias misses. Diversas rainhas coroadas e amadas pela população relataram ter participado de um esquema de prostituição onde eram obrigadas a prestar favores sexuais a membros da ditadura cubana ou empresários que apoiavam o regime. Osmel Sousa nega tudo e agora coordena o Miss Argentina e Miss Uruguai.

O concurso foi reformulado, proibindo os patrocínios individuais de candidatas - eram eles o ponto central dos esquemas de prostituição. A rede de TV Venevisión, da família Cisneros, dona do Miss Venezuela, decidiu também reformular a cúpula do concurso. Em vez de uma figura única, que virasse a identidade da competição, três mulheres lindíssimas celebradas por suas capacidades intelectuais.

Funcionou. O concurso aconteceu e mobilizou a população venezuelana. Algumas adaptações foram feitas. Em vez de realizar o evento num estádio de futebol para 20 mil pessoas, o Miss Venezuela foi num estúdio da Venevisión para 200 pessoas. Os estilistas dividiram os custos das roupas com as participantes. Os artistas que se apresentaram na transmissão são jovens talentos venezuelanos em busca de fama.

A vencedora, Thalia Olvino, mobiliza agora as atenções do país: quer ser Miss Mundo. "Fazemos da beleza um instrumento que empodere a mulher venezuelana" é o lema do Miss Venezuela. As entrevistas dadas pela Miss, que pode ser mais uma campeã internacional, são feitas numa Venezuela que hoje existe para muito poucos.

Estima-se que atualmente 90% da população venezuelana não tenha acesso a insumos básicos como ovo, leite e pão. Quase 2 milhões e meio de pessoas fugiram para outros países por desespero. Por que o povo venezuelano ainda dá tanta importância para o Miss Venezuela?

"Ver mulheres bonitas, vestidos, as luzes, o espetáculo faz que o cidadão se esqueça da crise por oito horas. Ele se esquece por um momento que precisa fazer fila para conseguir açúcar, leite, remédios. Se esquece do tema da insegurança. Creio que o Miss Venezuela efetivamente distancia por um momento o venezuelano do seu acontecer, de seus problemas e da realidade do país", analisa o jornalista Diego Montaldo em entrevista ao paper "Miss Venezuela, a cara bonita da decadência".

O concurso não foi criado para distrair as pessoas da sua realidade nem apoiar ditadores, pouco a pouco se chegou a esse resultado. O primeiro passo foi quando a organização Cisneros abriu mão de fazer críticas frontais ao regime de Hugo Chávez diante de uma situação muito complicada que precisou de intervenção internacional.

Em 2002, vários protestos começaram a ser feitos no país contra Hugo Chávez. As redes de televisão não só deram ampla cobertura como faziam anúncios convocando os venezuelanos para as manifestações. Houve um golpe de Estado que durou 47 horas. O presidente foi apeado do poder e preso. Tomou posse o presidente da Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio, Pedro Carmona.

Já no primeiro dia, ele dissolveu o Congresso Nacional, a Suprema Corte e revogou a constituição. O mesmo povo que tinha ido às ruas contra Hugo Chávez começou a fazer passeatas contra o novo governo, que não se sustentou. Foi a justificativa para a escalada autoritária na Venezuela: como o presidente efetivamente era ameaçado, precisava tomar medidas duras. O povo aceitou.

No caso da televisão Venevisión, ela é de propriedade das Organizações Cisneros, que também têm no grupo o Miss Venezuela. Estavam em desgraça, já que Hugo Chávez os acusava de participação direta no golpe de Estado. O ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter interveio e promoveu uma reunião conciliatória entre o mandatário venezuelano e o CEO da TV, Diego Cisneros. Ele aceitou baixar o tom das críticas.

Menos de 10 anos depois, o Miss Venezuela seria instrumentalizado para uma das maiores façanhas da ditadura venezuelana: conseguir passar o poder de um forte e carismático Hugo Chávez para um fraco Nicolás Maduro. O governo tinha um problemão nas mãos. O presidente estava com câncer e ninguém sabia direito do estado dele ou dos prognósticos. A essa altura do campeonato, a imprensa obviamente não fazia perguntas incômodas.

Em janeiro de 2012, pela primeira vez em décadas, a rainha coroada do Miss Venezuela fez uma visita oficial ao Palácio de Miraflores, sede da Presidência. A belíssima Ivián Sarcos era o retrato do sonho de princesa venezuelana, coisa de conto de fadas. Era camelô nas ruas de Caracas e foi coroada Miss Mundo. As imprensa oficial fez uma ampla cobertura da visita:

Ivián Sarcos não mediu palavras para elogiar Hugo Chávez e sua gestão. Na época, o país ainda não estava afundado na crise impressionante que viemos a conhecer nos últimos 5 anos, mas as liberdades individuais já haviam sido bastante podadas e a violência nas ruas começava a ser uma realidade.

Dois anos depois da validação da Miss Venezuela ao regime de Chávez, o concurso promoveu o silêncio mais eloquente sobre um assassinato decorrente do caos em que o país estava mergulhado, o da Miss Venezuela 2004.

Em 2014, devido ao início da crise econômica e à intensificação da polarização política, começaram a eclodir protestos cada vez mais violentos. Em um deles, Mónica Spear, miss 2004 e atriz famosa, foi assassinada junto com o marido. O assassinato acirrou ainda mais os ânimos e gerou novos protestos.

Era o começo da derrocada econômica da Venezuela, que mergulharia o país no caos que conhecemos hoje. Nesse contexto, o concurso de miss se tornava ainda mais importante para desligar um pouco o povo da realidade. Como lidar com o primeiro assassinato de uma rainha? Com o silêncio mais eloquente que a mídia venezuelana havia ouvido até então. Durante as oito horas de transmissão, não se disse uma palavra sobre Mónica Spear.

O terreno era mais pantanoso do que previram o governo e os organizadores do concurso. O povo ama as misses venezuelanas e ninguém perdoou a falta de uma homenagem decente. "A morte de Mónica foi um caso que nos doeu muito e essa noite era de muito luxo, alegria e música. Não era um momento propício para homenagens.", declarou na época o Czar do Miss Venezuela, Osmel Sousa.

Horas depois, pela mais absoluta coincidência, vazaram pelas redes sociais nudes da Miss Venezuela que acabava de ser coroada. O fato mobilizou a imprensa venezuelana e as redes sociais. Mariana Jiménez ganhou todo o espaço do mundo para explicar que não eram nudes, mas uma campanha contra o HIV e a gravidez na adolescência. Ninguém mais lembrava do assassinato, do silêncio, da violência.

Hoje, o Miss Venezuela posta fotos de beleza e luxo que recebem comentários apaixonados de cidadãos que vivem na miséria e sob o jugo de um autoritarismo sem nenhum respeito pelos direitos das pessoas. Todas as moças que tentam um lugar ao sol têm o direito de usar a própria beleza para tentar fugir das amarras de um governo cruel. Não tenho dúvidas de que para a população também é importante ter momentos de distração que façam recobrar as forças.

A grande questão moral é saber em que medida o Miss Venezuela trabalha para aliviar a miséria e opressão que ele próprio ajudou a consolidar. Eu não sei, sei apenas que a História tem um lugar reservado para cada um dos atores do regime venezuelano.

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