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Moda da pandemia: anunciar produtos em redes sociais de políticos
| Foto: Divulgação

Há algo de intrigante na criatividade debochada do brasileiro diante das piores dificuldades. Na pandemia, muita gente que estava conseguindo ir bem nos setores de comércio e serviços viu o sonho de uma vida toda indo pelo ralo. E aqui não vamos cair nessa catarse coletiva de botar a culpa nesse político, naquele, no técnico, no médico, a situação é inédita e trágica.

Nós crescemos na hiperinflação, estamos aprendendo desde 1994, com o Plano Real, o que é planejamento e como se estrutura um negócio. Quem conseguiu superar essa nossa barreira cultural e prosperar ficou diante de uma situação impossível de resolver racionalmente: um vírus desconhecido. Verdade seja dita, ninguém sabe ainda quanto tempo essa situação dura, se melhora, se piora, se simplesmente desaparece. Temos de dar tempo ao tempo.

Uma coisa é a gente aceitar conviver com o caos e não controlar o que acontece à nossa volta durante a pandemia. Outra bem diferente é o comerciante explicar isso para fornecedores, credores e empregados que têm dia certo para receber. Na onda de adaptações, muita gente encontrou as redes sociais bombadas dos políticos.

Eu achei que a polarização política não serviria para nada além de encher a paciência da gente. E, vejam só, criou uma alternativa para o ganha-pão de quem não perde tempo com esse tipo de bobagem mas tem olho vivo para soluções no mundo real. Os comerciantes e prestadores de serviço que aparecem nas lives e perfis dos políticos não têm a permissão deles e nenhuma relação com política.

O método é comercial mesmo. Se você vende quentinha, por exemplo, não tem quentinha de esquerda ou de direita, tem simplesmente quentinha. Então, o escolhido é o perfil mais bombado ou a live mais bombada. Para quem já está pensando que isso dá errado com base em "mas ninguém está ali procurando produtos, está para debater política", vamos ao mundo real: funciona. A mesma pessoa que debate política tem casa, família e problemas diários.

O pioneiro foi o vendedor de torresmo Airton Fonteles Junior, em 5 de abril. Como ele vendia para restaurantes, que foram fechados, as encomendas praticamente zeraram. Ele entrou na live do governador do Ceará, Camilo Santana, e resolveu anunciar seu torresmo de primeira. Deu certo.

Depois que a notícia apareceu em diversos portais, outros comerciantes viram aí uma oportunidade. O Instagram do presidente Jair Bolsonaro, que tem 17,5 milhões de seguidores, virou uma espécie de seção de classificados. Quando você marca uma pessoa em uma foto sua no Instagram, essa foto passa a aparecer no mural da pessoa, em uma seção específica das fotos em que ela foi marcada: identificações. É claro que a maioria marca o presidente em posts políticos, mas o setor de serviços está lá em peso com anúncios como os seguintes:

Por ter um número monumental de seguidores, o perfil do presidente da República é marcado nas mais variadas publicações, incluindo até propaganda de garotas de programa. Reforçando aqui que as pessoas não precisam de autorização de quem é marcado para fazer isso. No perfil do vereador Carlos Bolsonaro a prática se repete:

Não é só na família presidencial que existe o Instagram na modalidade mural de classificados. Parlamentares com muito engajamento também têm perfis interessantes para os comerciantes. No mural da deputada Joice Hasselmann, há vários anúncios, indo de drones para filmagem até escola de princesas.

Mostrando o caráter suprapartidário da atividade comercial, verificamos que o Instagram do primeiro político que virou mural de classificados, o governador petista Camilo Santana, também tem anúncios de todo tipo, inclusive tutorial de maquiagem no estilo TikTok.

Se, na antiga dinâmica da comunicação, os políticos precisavam da imprensa para expor suas ideias, agora também começa a surgir um fenômeno interessante na mão oposta. Os políticos ainda se valem e se valerão da imprensa tradicional, só que os canais alternativos encontram nos perfis mais bombados uma forma de atrair público. A Rede Gazeta News de Guarulhos, por exemplo, marcou Marcelo Freixo em sua reportagem sobre o espetáculo de malabarismo com facas.

Eu poderia passar o dia inteiro coletando, em todas as redes sociais, exemplos semelhantes. É algo que ultrapassa fronteiras geográficas, ideológicas e de tipo de público. Aliás, se você resolver fazer isso nas redes de políticos que segue, sobretudo durante as lives, vai perceber que é muito mais frequente do que pensa.

Além de me divertir, por que eu fui atrás desse pessoal fazendo anúncio de produto em perfil de político? Para demonstrar que o povo já entende mais do funcionamento das redes sociais do que muitos jornalistas e intelectuais. O motivo é simples: povão não se sente obrigado a dizer que sabe tudo, pode aprender.

Enquanto vemos jornalistas debatendo ideias nas redes sociais, às vezes entrando até em discussões acaloradas - como, aliás, já fiz no passado até resolver gastar o meu tempo estudando essa nova dinâmica do debate público - os comerciantes já entenderam que rede social não é meio de comunicação, é plataforma de publicidade direcionada.

Essas pessoas todas podem nem saber o que significa a palavra algoritmo e talvez nem imaginem como é o mecanismo de direcionamento de publicidade por coleta de dados com o uso de inteligência artificial. Aliás, não precisa entender isso para entender do que move o mundo: gente.

Pequenos comerciantes de todo o Brasil já descobriram que rede social não serve para debate, serve para vender, seja produto ou ideia. Então, eles entram no perfil de quem tem muito talento para criar um público fiel e tentam ganhar esse público. Vejamos quanto tempo intelectuais e jornalistas demorarão para entender o que o povão já sabe.

Enquanto ainda vemos manchetes falando que a hashtag tal coisa chegou aos trending topics do Twitter, como se o assunto fosse relevante, o povão já se ligou que não tem nada a ver com o assunto, só com a empolgação que ele causa.

As pessoas fazem o quê? Usam a hashtag para expor seus trabalhos e ideias. Em alguns casos, pouco importa o país: há brasileiros que usam hashtags de países estrangeiros e pessoas de outros países que usam as nossas. Essas pessoas sabem que isso aumenta a chance de ser visto e que ninguém está ligando muito para o assunto debatido, mas para a empolgação que ele causa.

A convivência e o debate público foram completamente modificados pelas redes sociais e todos nós sentimos isso na família, entre amigos e na vida profissional. Quem tem medo de descer do salto ainda vai bater muito a cabeça até aceitar que o mundo mudou. Felizmente, pequenos empreendedores de todo o Brasil, ainda que intuitivamente, já entenderam a mudança. No meio de uma pandemia, tem brasileiro transformando bate-boca no pão que põe na mesa da família. Haja criatividade.

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