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Movimento antivacina usa técnica russa de propaganda
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Todos os anos, 1,5 milhão de crianças morrem no mundo em decorrência de doenças que poderiam ser evitadas com vacinas. Este ano, o movimento antivacina foi incluído pela OMS na lista das 10 maiores ameaças à saúde pública no planeta.

Há quem diga que cada família tem o direito de escolher se vacina os filhos, mas isso não é verdade. A decisão de uma família implica no bem-estar e na segurança de todas as outras.

A eficácia da vacina não depende apenas de tomar ou não, mas de ter um percentual alto da população vacinada. Isso é calculado cientificamente. Sarampo, por exemplo, precisa de 95% da população vacinada. Tivemos um surto no Brasil de uma doença mortal que havia sumido porque estamos apenas em 70%.

Há 4 anos, escrevi um texto que foi muito polêmico. Pregava que os antivacinas, então na moda dos grupinhos progressistas no Facebook, fossem denunciados. Muita gente ponderou que eu estava contaminada pela minha experiência em Angola, jamais chegaríamos a percentuais de vacinação tão baixos a ponto de fazer ressurgir doenças. Chegamos.

Como pessoas adultas e que estudaram podem arriscar a vida dos próprios filhos, testemunhar a volta de doenças erradicadas e ainda assim acreditar em lendas antivacina? Uma estratégia de propaganda russa explica muita coisa.

Quem identificou esse movimento foi o PhD em bioquímica da Universidade de Cambridge Lucky Tran, que tem uma coluna no jornal britânico The Guardian. Ele relaciona o "Firehosing", que pode ser traduzido como "regar com mangueira de incêndio", ao crescimento desse movimento baseado em mentiras.

O movimento antivacina é resultado de um ato de corrupção no ano de 1998. O médico Andrew Wakefield publicou um artigo científico na revista Lancet (um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo) dizendo que a vacina tríplice viral causa autismo. Alguns anos depois, descobriram que esse médico recebia pagamentos de advogados em processos contra o Estado por danos vacinais.

Foram investigar o estudo dele e viram que não havia estudo nenhum, levantamento de fatos, amostras, testes. Era apenas uma simulação. Andrew Wakefield teve a licença médica cassada por esse artigo e mais um fato: coletou amostras de sangue dos amigos do filho de 5 anos na festa de aniversário dele, pagando £5 a cada criança, sem consentimento dos pais.

Hoje, ele está famoso e milionário. Tem livros que vendem muito bem, as próprias mídias e vive aparecendo em canais que vivem de polêmicas em geral, não apenas sobre vacinas.

Como algo de origem espúria, engendrado por pessoas com essa biografia, pode convencer gente em todo o mundo a arriscar a saúde dos próprios filhos? Propaganda, ao estilo russo. Entre em qualquer grupo antivacina no Facebook: eles estão absolutamente convencidos de que há uma grande conspiração, foram levados a isso pouco a pouco.

O Firehosing consiste em inundar o debate público com as narrativas que interessam a determinado emissor, no caso, o movimento antivacina. Não importa que sejam mentirosas ou absurdas porque o objetivo NÃO é convencer. O objetivo é tirar o poder dos fatos para que eles sejam equiparados a mentiras.

As pessoas são inundadas com tantas opiniões, frequentemente expostas de forma agressiva e forjadas a partir de mentiras, que se torna exaustivo e humanamente impossível checar cada uma delas para provar que não batem com os fatos.

A realidade deixa de ser medida pelos fatos e passa a ser medida pelo posicionamento de cada um. Quem vende melhor o peixe ganha, passa a ser visto como quem diz a verdade. Os dados que cita passam a ser automaticamente validados por quem acredita no discurso, que não vai ter tempo para checar se aquilo é verdade e quem é aquela pessoa.

A técnica funciona melhor quando a posição defendida é vista como "outsider" ou até absurda porque atrai muito mais atenção. A reação imediata das pessoas que têm credibilidade será refutar a afirmação específica, mostrando que não coincide com os fatos.

Isso amplifica as opiniões polêmicas baseadas em mentiras. É só a mesma pessoa ou instituição lançar outra mentira, depois outra, mais outra, uma mais, mentir bastante mesmo com frases de efeito. Começa o círculo vicioso que ganha adeptos apaixonados.

Para o governo russo, esse estilo de propaganda tem sido fundamental para diminuir a necessidade de uso da força na manutenção do poder. É muito complicado impor o sistema russo sobre um país de dimensões continentais agora que o povo consegue ter contato com o mundo exterior. Controlar mentes diminui a necessidade de violência, que abalaria o poder político.

No caso dos antivacinas não se sabe qual é o interesse específico envolvido. Só sabemos que gente que já foi punida por viver de falsificação e propina hoje está milionária vendendo esse tipo de conteúdo.

Os antivacinas criaram um império de comunicação, com diversos milionários. Só nos Estados Unidos são mais de 500 portais de internet impulsionados por redes sociais, centenas de grupos no Facebook e há conteúdo à venda na Amazon, livros de antivacinas sem fundamento científico, feitos por gente de caráter duvidoso.

É importante deixar claro que a maioria dos antivacinas não faz parte desse império do mal: são pessoas que foram enganadas e estão sendo exploradas por este esquema. No entanto, o que fazemos no dia-a-dia das redes sociais? Miramos contra essas pessoas. Isso faz com que elas se refugiem mais ainda no grupo e blinda os reais culpados, os que ganham dinheiro com isso.

O estudo que definiu o que é "Firehosing", em 2016, tem uma frase emblemática: "Não esperem combater a mangueira de bombeiro da mentira com a arminha de água da verdade".

Os autores, Christopher Paul e Miriam Matthews, da Rand Corporation, dizem que "fact-checking" é inútil para combater estratégias de desinformação, é como enxugar gelo. Funciona mais explicar ao público quais são as técnicas utilizadas para manipular informação.

Outra recomendação é que o público pressione as plataformas, que também estão lucrando alto com o movimento antivacina, a remover esse tipo de conteúdo. É justo que Amazon, YouTube, Twitter, Facebook e Instagram ganhem dinheiro com um movimento que provoca mortes e volta de doenças erradicadas?

Um ponto importante é que nunca se sugere controle por lei ou regulação estatal. Ainda não há uma forma comprovada de combater o "Firehosing", mas os casos de sucesso partem todos da sociedade civil. Um dos modelos mais estudados é o de autorregulação das comunicações, com participação popular, na Finlândia.

Temos um grande debate sobre liberdade de expressão adiante.

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